Diálogo autoral com Nelson Rodrigues
Nelson Rodrigues escreveu Boca de Ouro destacando as diferentes versões de uma das personagens da peça, Guiomar, em relação ao protagonista, seu antigo amante, o bicheiro nascido numa pia de gafieira. O público é apresentado a Boca de Ouro pela perspectiva de Guiomar, que, de início, fornece um retrato negativo e depois muda seu depoimento ao ser informada de que ele morreu. Gabriel Villela, diretor da montagem em cartaz no Sesc Ginástico, também expõe a sua versão da peça, na qual realça diversos mecanismos de distanciamento na abordagem do texto original e na proposta de conexão entre a encenação e o espectador.
Villela dá vazão a muitos procedimentos com o objetivo de produzir um estranhamento na plateia, de provocar um estado de suspensão. O diretor sublinha a construção da cena, a exemplo dos momentos em que faz com que os atores interrompam a ação para colocarem diante do público um líquido que simboliza sangue (Boca de Ouro é conhecido como o Drácula de Madureira), mencionem a pequena superfície disposta no meio do palco, quebrem a quarta parede e assumam um registro interpretativo exteriorizado e fisicamente partiturado (linha flagrante no trabalho de Mel Lisboa, mas seguida à risca por Malvino Salvador, Lavínia Pannunzio, Chico Carvalho, Claudio Fontana, Cacá Toledo, Leonardo Ventura, Guilherme Bueno, com Mariana Elisabetsky e Jonatan Harold voltados para as intervenções musicais).
Desse modo, Gabriel Villela valoriza a estrutura do espetáculo, talvez com o intuito de conciliar a projeção de uma autoria própria com a fidelidade a um dramaturgo como Nelson Rodrigues que evidencia diante do leitor a estrutura de suas peças (a construção e a musicalidade das falas). O diretor dialoga com o autor, como se procurasse embasar a sua criação, sem com isso adotar postura subserviente. Arrisca-se em discretas ousadias, como a de determinar que atores travestidos surjam como as grã-finas diante de Boca de Ouro.
Todos esses recursos de distanciamento seriam contrabalançados por uma cena visualmente atraente, característica do teatro de Gabriel Villela, mas que, dessa vez, se revela menos encantadora. O diretor (que, não por acaso, costuma assinar o cenário e os figurinos, como, aliás, acontece aqui) não parece ter investido tanto no rendilhado, no artesanal interiorano, que constituem parte da identidade de montagens anteriores – não limitadas, porém, a um esteticismo vazio. De qualquer maneira, essa encenação de Boca de Ouro seduz por certo apelo nostálgico – seja por meio do repertório das canções, seja através das atuações filiadas ao melodramático – que tende a alcançar resultado junto ao público. Ao não ambicionar com tenacidade o impacto estético, Villela não deixa de conceber a imagem como dramaturgia, perceptível na crescente e intencional poluição que toma conta do palco à medida que as versões sobre a morte de Boca de Ouro vão se embaralhando.
O que possivelmente afasta a plateia não é a sucessão de quebras, mas o mesmo andamento, a reduzida variação de temperatura atravessando a montagem. Contudo, as escolhas bem marcadas que norteiam esse Boca de Ouro confirmam Gabriel Villela como um diretor inquieto.