Destaques em ano marcado pela instabilidade
Gritos, encenação da Cia. Dos à Deux (Foto: Renato Mangolin)
O teatro apresentado no Rio de Janeiro ao longo de 2016 foi tomado por temporadas meteóricas, fator que dificultou a repercussão das encenações – por isso, voltadas a um público reduzido. O problema não está na realização de projetos específicos para plateias restritas – algo que pode evidenciar um desejo genuíno de estabelecer uma relação individualizada com o espectador –, mas na concentração da atividade teatral num círculo cada vez mais diminuto.
Aqueles que se dedicam a propostas investigativas, de cunho notadamente autoral, costumam permanecer em cartaz durante pouco tempo e enfrentam obstáculos para retornar ao circuito; já o teatro de mercado desponta com frequência decrescente. Em todo caso houve espetáculos representativos, mais no primeiro semestre do que no segundo e tanto de companhias quanto avulsos.
Além das montagens listadas abaixo, trabalhos em encenações diversas devem ser destacados. Em termos de atuação, as de Caco Ciocler em Caesar – Como Construir um Império, Bernardo Marinho em Os Sonhadores, Emilio de Mello e Debora Bloch em Os Realistas, Laila Garin em Gota D’Água (a Seco), Helena Varvaki em A Outra Casa, Denise Fraga em Galileu Galilei, Luciano Chirolli em Memórias de Adriano, Kiko Mascarenhas em O Camareiro, Grace Passô em Vaga Carne, Vilma Melo em Chica da Silva – O Musical, Julia Lund em Amor em 2 Atos, Marcos Caruso em O Escândalo Philippe Dussaert, Juliana Guimarães e Pedroca Monteiro em Sucesso e Ricardo Kosovski em Boa Noite, Professor. Entre as direções mais expressivas, as de Eduardo Wotzik em Estudo para Missa para Clarice, Aderbal Freire-Filho em A Paz Perpétua e Adriana Schneider e Lucas Oradovschi em Cidade Correria. As dramaturgias de Jacy, assinada por Pablo Capistrano e Iracema Macedo (com colaboração de Henrique Fontes), Alice Mandou um Beijo, a cargo de Rodrigo Portella, e O Açougueiro, de autoria de Samuel Santos, merecem menção.
Também cabe elogiar as cenografias de Daniela Thomas e Camila Schmidt em Os Realistas, Adriano e Fernando Guimarães e Ismael Monticelli em Hamlet – Processo de Revelação, Rodrigo Portella em Alice Mandou um Beijo, André Cortez em Gota D’Água (a Seco), Aurora dos Campos em Os Sonhadores e Camila Rodrigues em Antes do Café; os figurinos de Lulu Areal em Doroteia, Kika Lopes em Gota D’Água (a Seco), Luiza Fardin em Se eu Fosse Iracema, Marcelo Olinto em Gilberto Gil – Aquele Abraço e Thanara Schönardie em Valsa nº6; as iluminações de Roberto Alvim em Caesar – Como Construir um Império, Tomás Ribas em Fatal, Rodrigo Belay em Os Sonhadores, Nadja Naira em Vaga Carne, Aline Santini em Chet Baker – Apenas um Sopro e Lucia Koch e Carolina Mendonça em Tragédia: uma Tragédia.
Houve ainda importantes contribuições, como os livros Teatro é o Melhor Programa, de Flavio Marinho, e Yara Amaral: a Operária do Teatro, de Eduardo Rieche, a idealização do projeto Que Tempos são Esses?, da Cia. Ensaio Aberto, composta por exposição, leituras dramatizadas, seminários e mostra de filmes marcando os 60 anos da morte de Bertolt Brecht, o recorte de espetáculos poloneses, a exibição de vídeos de encenações de Tadeusz Kantor e a realização de debates em ambiente universitário no Tempo Festival, a direção de movimento de Renato Vieira em Lili e a Rede Baixada em Cena, que reuniu 18 coletivos de 13 cidades da Baixada Fluminense, iniciativa relevante a julgar pela pouca circulação dos espetáculos e grupos. Vale registrar a inauguração de espaços teatrais – o Nathalia Timberg, acoplado à sala Nathalinha, o Cesgranrio e o Riachuelo – num momento em que tantos foram demolidos ou continuam fechados.
DESTAQUES:
CABEÇA (UM DOCUMENTÁRIO CÊNICO) – Musical do coletivo Complexo Duplo, com dramaturgia, assinada pelo diretor Felipe Vidal, centrada num diálogo entre passado e presente. O álbum Cabeça Dinossauro, dos Titãs, de 1986, é evocado sem que se perca de vista os dias de hoje. A integração entre os atores/músicos (Felipe Antello, Felipe Vidal, Guilherme Miranda, Gui Stutz, Leonardo Corajo, Lucas Gouvêa, Luciano Moreira e Sergio Medeiros) sobressai.
CAIS OU DA INDIFERENÇA DAS EMBARCAÇÕES – Montagem da Velha Companhia, dirigida por Kiko Marques (acumulando ainda as funções de autor e ator), que concilia as instâncias do dramático e do épico ao focar nas jornadas de personagens específicos – pertencentes a diferentes gerações que moram em Ilha Grande ou seguem vinculados a essa localidade depois de terem saído de lá – e, a partir das trajetórias deles, apresentar um breve panorama do Brasil ao longo de décadas do século XX.
O COMO E O PORQUÊ – Encenação elegante e sóbria de Paulo de Moraes para o texto da americana Sarah Treem sobre o conflito entre duas mulheres de gerações distintas que pertencem à mesma área. Suzana Faini comprova domínio na articulação entre pensamento e fala, convence sobre a intimidade da bióloga com o universo abordado e demonstra precisão nas transições propostas pela dramaturga. Na iluminação, Maneco Quinderé destaca os espaços de ausência.
ESSE VAZIO – O diretor Sergio Módena conseguiu apreciável equilíbrio interpretativo entre os atores Daniel Dias da Silva, Gustavo Falcão e Sávio Moll na encenação do texto do argentino Juan Pablo Gómez sobre o encontro de três amigos de infância no velório de um quarto.
GATA EM TELHADO DE ZINCO QUENTE – Eduardo Tolentino de Araujo indica possibilidades de leitura para o texto de Tennessee Williams a partir da proposta cenográfica de Ana Mara Abreu e Alexandre Toro e do figurino de Gloria Kalil para Maggie. O vestido encardido de Maggie e o esqueleto de uma cama e os espelhos embaçados que compõem o cenário explicitam (sem reiterar) o desgaste dos relacionamentos que atravessam a peça. No elenco, Zecarlos Machado frisa a rispidez de Paizão sem enveredar por linearidade redutora da humanidade do personagem.
GRITOS – André Curti e Artur Luanda Ribeiro dão continuidade e renovam a pesquisa que move a Cia. Dos à Deux, voltada para um teatro sem uso de palavras. Aqui, assinam um espetáculo político, mas nada panfletário, e colocam o espectador diante do desafio de ver demais (os atores por trás das máscaras) e, ao mesmo tempo, de menos (a iluminação, de Ribeiro e Hugo Mercier, propositadamente reduzida).
LEITE DERRAMADO – Roberto Alvim estabelece uma relação criativa com a obra original de Chico Buarque, procurando extrair um sumo, a partir de uma leitura autoral, ao invés de se limitar a descortinar um enredo diante do público. O diretor assina uma montagem rigorosa, valorizada pelo trabalho minucioso e contundente de Juliana Galdino como o centenário Eulálio D’Assumpção.
MYRNA SOU EU – Sob o pseudônimo de Myrna, Nelson Rodrigues assinou coluna no jornal Diário da Noite, em 1949. Nessa montagem de Elias Andreato, porém, Myrna transmite conselhos sentimentais num programa de rádio a partir da leitura de cartas enviadas pelos ouvintes. A interpretação de Nilton Bicudo revela domínio corporal e vocal. O ator não limita o trabalho à caracterização; ao contrário, apropria-se da feminilidade. Sem enveredar por linha apelativa, diverte o público graças a precisa noção de timing.
UM NOME PARA ROMEU E JULIETA – Dani Lossant realiza uma nova visita ao projeto encenado há dez anos dentro do ambiente universitário. Os atores (Diogo Liberano, Carolina Ferman, Andrêas Gatto, Daniel Chagas, Márcio Machado e Morena Cattoni) imprimem marcas de presença no espaço, cada vez mais poluído. Juntamente com a cenografia (da própria Lossant), os figurinos de Luci Vilanova exibem evidências de uso e contribuem para um visual nada asséptico. A destacar ainda, a direção de movimento de Nathalia Mello.
NÓS – A sobrevivência do Galpão ao longo de mais de três décadas coloca o grupo numa certa posição de resistência frente ao contexto da cena contemporânea, na medida em que as companhias de porte médio tendem a sucumbir diante dos obstáculos crescentes (fenômeno que já ocorreu com as grandes). A preparação de uma sopa simboliza o projeto conjunto, que, porém, não é executado harmoniosamente. O jogo de repetições contido na dramaturgia (a cargo do diretor Marcio Abreu e do ator Eduardo Moreira) evidencia o cansaço nas relações, fragilizadas por ânimos cada vez mais exaltados. No elenco, Teuda Baura concentra as atenções.
George Luis
29 de dezembro de 2016 @ 15:23
Senti falta de “Cidade Correria” na sua lista. Um dos espetáculos mais poderosos de 2016.
danielschenker
29 de dezembro de 2016 @ 16:43
Tem razão. É um espetáculo forte. Não selecionei para a lista, mas fiz uma inclusão no texto.