Curadoria sinaliza tendências sem perder de vista as diferenças
Preto, montagem da companhia brasileira de teatro (Foto: Nana Moraes)
FESTIVAL DE CURITIBA – O recém-encerrado Festival de Curitiba vem evidenciando determinadas transições em sua programação ao longo dos anos, mas sem romper o modelo básico sobre o qual está estruturado: a Mostra, composta por espetáculos convidados, e o Fringe, que agrupa encenações por ordem de inscrição.
O Fringe teve seu formato criticado com alguma frequência, na medida em que o objetivo central não estaria sendo atingido: fornecer ao espectador um democrático apanhado da produção teatral brasileira sem qualquer seleção prévia. Entretanto, devido à localização de Curitiba, é bem mais difícil para grupos das regiões Norte, Nordeste e Centro Oeste desembarcarem no festival. A partir de um dado momento, o Fringe começou a contar com curadorias responsáveis pela criação de pequenas mostras que passaram a funcionar como nortes para o espectador em meio ao vasto cardápio de montagens anunciadas. Entre elas, vale destacar a 2ª Mostra Teatro de Segunda – composta por espetáculos, shows, leituras, oficinas e conversas, tudo no espaço de um apartamento (AP da 13) – e a 5ª Mostra Ave Lola – reunião de trabalhos de Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo em ambiente acolhedor.
Já a mostra oficial passou a ser conduzida, desde o ano retrasado, pelo diretor Marcio Abreu e pelo ator Guilherme Weber. Sem se distanciarem por completo da produção de mercado, que imprimiu o perfil do Festival de Curitiba durante algum tempo, os curadores passaram a privilegiar um teatro mais experimental, investigativo, sintonizado com urgências da contemporaneidade. É possível detectar tendências na seleção desse ano.
Há alguns espetáculos que, de maneiras diversas, investiram no intercâmbio entre o teatro e outras manifestações artísticas ou que se filiaram diretamente a elas. Foram os casos de Corpo sobre Tela – solo do bailarino Marcos Abranches, inspirado na vida e na obra do pintor Francis Bacon –, Cidadão Instigado – show comemorativo dos 20 anos da banda cearense –, Dança Sinfônica + Gira – criações do Grupo Corpo –, Doze Flores Amarelas – ópera rock dos Titãs –, Inoah – trabalho do coreógrafo Bruno Beltrão –, Manual de Autodefesa Intelectual – interseção entre teatro, música, dança e vídeo, a cargo de Fernando Kinas – e Salomé – rock com a marca de Fausto Fawcett. A inclusão desses espetáculos no festival parece decorrer de um desejo de tensionar as fronteiras teatrais.
Cabaret Macchina, trabalho da Casa Selvática (Foto: Divulgação)
O estímulo à interação com outras artes ainda pode ser percebido, em certa medida, em trabalhos genericamente classificados como performáticos. Se o Título fosse um Desenho, seria um Quadrado em Rotação reuniu quatro ações, conduzidas por Eleonora Fabião, pelas ruas de Curitiba; Frequência Ausente 19Hz propôs ao espectador uma experiência individualizada em trajeto pela cidade conduzido pela voz do ator Gustavo Vaz, que interpreta texto inspirado em A Náusea, de Jean-Paul Sartre; e A Máquina de ser Outro despontou como uma instalação interativa, concebida por Philippe Bertrand e Alessandra Vidotti, a partir da questão “como seria o mundo se pudéssemos enxergar pelos olhos dos outros?”.
No extremo oposto, espetáculos mais próximos de um formato de mercado, o que não significa que reduzidos a concepções convencionais: A Visita da Velha Senhora, encenação de Luiz Villaça conhecida peça de um autor renomado, Friedrich Dürrenmatt, tendo à frente do elenco dois atores com projeção nacional – Denise Fraga e Tuca Andrada; e Os Guardas do Taj, dramaturgia menos conhecida, de Rajiv Joseph, ganhou encenação de Rafael Primot e João Fonseca, com dois atores chamarizes de bilheteria – Reynaldo Gianecchini e Ricardo Tozzi.
A Mostra também contou com espetáculos consagrados por público e crítica – Grande Sertão: Veredas, apropriação de Bia Lessa para a obra monumental de Guimarães Rosa, Tom na Fazenda, encenação de Rodrigo Portella para o texto de Michael Marc-Bouchard, Suassuna – O Auto do Reino do Sol, mergulho da companhia Barca dos Corações Partidos no universo de Ariano Suassuna, viagem conduzida por Luiz Carlos Vasconcelos, e O Jornal, montagem de Kiko Mascarenhas da contundente peça de Chris Urch.
Houve a preocupação de valorizar trabalhos continuados de companhias ou coletivos. Os artistas da Casa Selvática mostraram Cabaret Macchina, sob a direção de Ricardo Nolasco. O Grupo Magiluth se debruçou sobre Hamlet, de William Shakespeare, em Dinamarca, encenação a cargo de Pedro Wagner. A companhia brasileira de teatro trouxe Preto, dramaturgia coletiva de Grace Passô, Nadja Naira e do diretor Marcio Abreu. A Cia. dos Atores apresentou sua recente criação, Insetos, na qual deu continuidade à parceria com Jô Bilac, agora em espetáculo de Rodrigo Portella, que não foi o único diretor a figurar na programação com duas montagens. Gabriel Villela confirmou sua autoria em Boca de Ouro, leitura, atravessada pelo melodrama, da peça de Nelson Rodrigues, e Hoje é Dia de Rock, peça de José Vicente que propiciou aproveitamento de suas raízes mineiras.
Os monólogos constaram na programação, aparentemente não como solução de mercado, mas como escolha artística. Denise Stoklos, atriz que há bastante tempo enveredou para a carreira-solo, imprimiu sua refinada gramática corporal em trabalho escorado no livro Extinção, de Thomas Bernhard. Gilberto Gawronski interpretou o texto de Sergio Blanco em A Ira de Narciso, montagem de Yara de Novaes. E Renato Livera trouxe à tona a dramaturgia de Gustavo Colombini em Colônia, encenação de Vinicius Arneiro.
A preocupação em estabelecer elo com a contemporaneidade sobressaiu em Domínio Público, resultado da reunião de quatro artistas recentemente censurados – Maikon K, Renata Carvalho (que também apresentou em Curitiba O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu), Wagner Schwartz e Elisabete Finger. E a questão da inclusão daqueles que costumam muitas vezes ser discriminados pela sociedade foi abordada em Vamos fazer nós mesmos, trabalho que surgiu de uma parceria entre artistas brasileiros e estrangeiros. A mostra, aliás, flertou com a programação internacional de maneira mais direta em Tristeza e Alegria na Vida das Girafas, dirigido por Thomas Quillardet. Juízos de valor à parte, a inclusão aleatória de um ou outro espetáculo estrangeiro sinaliza uma eventual insegurança no investimento numa programação inteiramente nacional.
O crítico viajou a convite da organização do festival