Convenções e singularidades
Letícia Isnard e Guida Vianna em Agosto (Foto: Silvana Marques)
A montagem de Agosto, peça norte-americana de Tracy Letts, caminha numa certa contramão da cena contemporânea, em especial no que se refere às circunstâncias de produção. É cada vez menos comum viabilizar encenações com um elenco numeroso – a não ser no musical, gênero frequentemente representado por espetáculos grandiosos. Agosto reúne 11 atores no palco e marca uma resistência às crescentes limitações econômicas.
O diretor André Paes Leme dinamiza a movimentação dos atores no pequeno teatro do Oi Futuro/Flamengo, um desafio em se tratando de um texto em que os personagens se dividem em núcleos e se distribuem pelos diversos ambientes de uma mesma casa. A cenografia de Carlos Alberto Nunes tensiona o realismo ao não trazer a tradicional separação de espaços. Destaca características descritas no texto através de determinados elementos – a tela escura, que sinaliza a atmosfera arruinada de uma casa onde não se distingue o dia da noite, os móveis enfileirados numa das laterais, sugestivos do caos potencializado pelo encontro familiar, e os tapetes dispostos no palco, simbolizando os recintos por onde os personagens transitam. O incômodo é realçado pela iluminação de Renato Machado – por meio das luzes localizadas atrás da tela e de frente para o público, acionadas como faróis – e pela música de Ricco Viana.
A escolha de uma peça verborrágica numa época tão acelerada como a atual é um dado que cabe considerar, mas Agosto não chega a se afirmar, nesse sentido, como um projeto de risco, na medida em que o texto coloca o espectador diante de uma sucessão de embates e ocasionais surpresas dentro da “trama”, ingredientes que funcionam como atrativos e tendem a diminuir uma eventual sensação de exasperação. Nessa peça já adaptada para o cinema (em Álbum de Família, de John Wells) e traduzida por Guilherme Siman, Tracy Letts radiografa um quadro familiar tomado pelo acúmulo de frustrações, que vêm à tona quando todos se reúnem devido ao desaparecimento de Beverly, o patriarca. Viciada em remédios, Violet, a matriarca, destila agressividade diante das filhas – Barbara, com quem estabelece confronto mais aberto, Karen, refugiada num mundo de ilusão, e Ivy, que ficou ao lado dos pais e vivencia a expectativa da libertação emocional. Letts propõe conflitos para cada personagem, inflamados pelo calor sufocante dentro da casa, e, no terço final, apresenta revelações que fragilizam a dramaturgia, deixando a cena em temperatura elevada, mas sem gradações.
Não seria justo, porém, reduzir as atuações às oscilações da dramaturgia. Conduzidos por André Paes Leme, os atores seguem diferentes vertentes interpretativas em sintonia com os perfis e as situações atravessadas pelos personagens, frisados nos figurinos de Patrícia Muniz. Os atores que valorizam o humor (constantemente ácido, cruel), sem perderem de vista o contexto dramático, oferecem desenhos um pouco mais nuançados – casos de Guida Vianna, Claudio Mendes (Charlie) e Eliane Costa (Mattie). Alguns evidenciam composições – Lorena Comparato (Jean), e Guilherme Siman (Charles). Outros permanecem em plano adequadamente discreto – Mariana Mac Niven (Ivy), e Julia Schaeffer (Johnna). Há ainda dois casais na história, papéis de Letícia Isnard (Barbara), que investe na voltagem dramática da personagem, e Isaac Bernat (Bill), que imprime registro natural, espontâneo; e de Claudia Ventura (Karen), que acentua a dependência do marido que norteia as ações da personagem, e Alexandre Dantas (Steve), que sublinha a perigosa malícia na interação com Jean.
Autor encenado recentemente nos palcos brasileiros (na versão de Mario Bortolotto para Killer Joe), Tracy Letts recorre em Agosto a expedientes dramatúrgicos convencionais, mas a montagem ocupa um lugar de exceção no panorama da cena contemporânea.