Contribuições instigantes
Rafael Gomes procura lançar um olhar inquieto em relação a Um Bonde chamado Desejo, peça de Tennesee Williams centrada na derrocada de Blanche DuBois, personagem que habita um mundo de ilusão que construiu para si. Violentamente confrontada pelo cunhado, o embrutecido Stanley Kowalski, ao desembarcar na casa dele e da irmã, Stella, em Nova Orleans, depois de perder a propriedade familiar, símbolo de uma vida glamourosa, Blanche integra uma vertente de personagens com dificuldade em lidar com a realidade. Outro exemplo na dramaturgia do autor é a Laura Wingfield de À Margem da Vida, refugiada em meio a seus bichinhos de cristal. Em cartaz no Tucarena, em São Paulo, a montagem foi selecionada para a Mostra Oficial do Festival de Curitiba.
É possível perceber a interferência criativa de Rafael Gomes – que, além de dirigir, assina a tradução do texto – em determinados elementos do espetáculo. Stanley parece mais distante da figura ríspida, instintiva, eternizada por Marlon Brando, intérprete do personagem no teatro (ao lado de Jessica Tandy) e no cinema (com Vivian Leigh), em ambos os casos sob a condução de Elia Kazan. Esse Stanley um pouco menos viril tem seu diferencial sublinhado pelo figurino de Fause Haten (em que pesem as excessivas trocas de roupa), ainda que, com o aumento da tensão, acabe se aproximando do perfil tradicional. Na cenografia, André Cortez concebe uma estrutura claustrofóbica – cercada pelo trilho do trem que traz Blanche a Nova Orleans – que dimensiona a importância dos espaços reduzidos, compartimentados, da casa de Stanley e Stella para o acirramento do embate com a protagonista. A iluminação de Wagner Antonio sugere uma atmosfera nostálgica, impressão que também vem à tona por meio da trilha sonora do próprio Rafael Gomes, e certa sensação de irrealidade nos instantes em que os atores/personagens têm suas silhuetas realçadas.
Os atores permanecem em cena durante todo tempo, mesmo quando seus personagens não participam da ação. Maria Luisa Mendonça, apesar de eventual concessão ao exagero (como na passagem em que evoca o trauma decorrente da morte do namorado de adolescência), revela atuação de fôlego ao transitar com habilidade por estados emocionais diversos. A atriz transmite com sensibilidade a extrema fragilidade de Blanche. Eduardo Moscovis imprime tom irônico e ênfase nas palavras. É uma sonoridade reconhecível, na medida em que frequente em seus trabalhos, que o ator, de qualquer modo, maneja com fluência. Donizeti Mazonas e Virginia Buckowski projetam os conflitos do pretendente Harold Mitchell e da irmã Stella diante de Blanche em atuações corretas, sem maiores destaques. Fabricio Licursi, Fernanda Castello Branco e Matheus Martins cumprem disciplinadamente seus papéis.
Talvez Rafael Gomes não chegue a apresentar uma leitura singular de Um Bonde chamado Desejo, mas sua montagem conta com contribuições instigantes que injetam algum sopro de renovação à célebre obra de Tennessee Williams.