Contemporaneidade nostálgica
Elcio Nogueira Seixas e Renato Borghi em Fim de Jogo, montagem de Isabel Teixeira apresentada no Festival de Curitiba (Foto: Humberto Araújo)
Fim de jogo, encenação de Isabel Teixeira para a peça de Samuel Beckett que integrou a Mostra Oficial da última edição do Festival de Curitiba, coloca o público diante de extravasamentos. De início, há indicações concretas. A montagem é destinada a um número reduzido de espectadores, que ficam confinados num determinado cômodo. Isabel Teixeira, porém, explode algumas delimitações.
Apesar de a plateia permanecer num único quarto, do começo ao final, as bordas dessa geografia são quebradas em dados instantes por Clov – personagem que não consegue sentar e atua como ajudante de Hamm, cego e paralítico – que transita por outros espaços inacessíveis ao olhar do espectador e demarcados por iluminação diversa (no quarto impera luz fria, fora dele, tons mais vibrantes), diferenciação estabelecida por Alessandra Domingues.
Ao contrário da rubrica fornecida por Beckett (“interior sem mobília”), Isabel Teixeira, em parceria com Karlla Girotto (direção de arte), insere muitos elementos – entre eles, cadeira de balanço, livros espalhados pelo chão servindo de sustentação a um móvel, bordados – relacionados a um universo pessoal, do ator Renato Borghi. Em São Paulo, a montagem foi apresentada na casa de Borghi, ambientação evocada (na medida do possível, obviamente) nas sessões em Curitiba.
A conexão íntima com o mundo de Borghi traz à tona uma atmosfera nostálgica, mas também contemporânea. Os elementos de cena estão ligados a uma história de vida. Remetem a um passado afetivo (no exemplo mais evidente, Nagg e Nell, pais de Clov, ao invés de aparecerem dentro de latas de lixo, são “materializados” nas fotografias dos pais falecidos de Borghi – Maria de Castro e Adriano). Há estatuetas conquistadas pelo ator no decorrer de sua carreira teatral e fotos do dramaturgo William Shakespeare e da cantora Dalva de Oliveira.
Mas todos os objetos constituem Borghi. Dizem respeito a um passado presentificado. Existe um elo assumido entre a limitação física de Hamm e as dificuldades de saúde enfrentadas, nos últimos anos, pelo ator, obrigado a lidar com grave problema de coluna. Borghi, portanto, aborda sua realidade de hoje. Não por acaso, surge em trajes atuais, ainda que um pouco mais formais que os de Elcio Nogueira Seixas.
Há uma coloquialidade nas atuações que sugere vínculo com o aqui/agora. Uma certa naturalidade contrasta com passagens de composição bem acentuada (as vozes de Nagg e Nell). As composições, inclusive, são imediatamente julgadas com contundência pelos próprios atores (“está horrível”), o que não os impede de continuar investindo nelas. Seja como for, ambos procuram se afastar de um lugar especial, reservado, frequentemente ocupado pelos atores, ao romperem barreiras com o público desde o primeiro momento. Borghi conversa com a plateia logo que entra em cena, enquanto Seixas envolve a perna com fita adesiva (simbolizando gesso), diante dos espectadores, de modo propositadamente precário, sem ambições ilusionistas.
A trilha sonora (de Aline Meyer) adiciona novos contextos à peça por meio de uma seleção heterogênea que inclui óperas, valsas, hinos, canções brasileiras (O mar) e estrangeiras (How insensitive, Tomorrow night). O concentrado de tempos distintos atrita com a base estagnada da relação entre Clov e Hamm, que vivenciam um círculo vicioso, claustrofóbico, repetitivo.
Contudo, a reunião de tempos encontrada nessa montagem possui sintonia com o Teatro Promíscuo, grupo fundado por Borghi e Seixas, que vem, desde a década de 1990, realizando apropriações de peças clássicas e encenações de textos recentes. Fim de jogo nasce da soma de autorias – da diretora, dos atores, de Fábio de Souza Andrade, responsável pela adaptação e tradução – na criação de uma versão propositiva e não subserviente à obra original.
O crítico viajou a convite da organização do Festival de Curitiba
Crítica publicada no site www.teatrojornal.com.br no dia 12/04/2016