Composição e desmascaramento
Malu Galli, Andréa Beltrão e Mariana Lima em Nômades (Foto: Nana Moraes)
Nos últimos tempos, uma considerável parcela de trabalhos vem sendo norteada pela determinação de artistas em assumir diante do público uma fala em primeira pessoa a partir de relatos de vivências próprias. As experiências reais são ficcionalizadas pelos atores, já que a evocação de vivências implica sempre em acréscimos e subtrações e que a presença de uma plateia leve os atores a interpretarem, o que tensiona, em alguma medida, uma idealizada transparência. A montagem de Nômades, em cartaz no Teatro Poeira, não se inscreve nessa tendência, mas a tangencia.
Em cena, Andréa Beltrão, Malu Galli e Mariana Lima parecem falar sobre o espetáculo, um pouco sobre si mesmas e sobre o próprio ofício. Há um jogo de composição e revelação que atravessa Nômades. Beltrão externa o desejo de desaparecer devido ao glamour da profissão e as atrizes tiram as perucas num evidente procedimento de desmascaramento. As atrizes dublam músicas com caracterizações bem realçadas, mas, no decorrer do espetáculo, se despem de efeitos e passam a utilizar suas vozes para cantar.
Entretanto, a montagem de Marcio Abreu não busca colocar o público diante de planos bem definidos. Em dado momento, as luzes se acendem sobre o público, mas os espectadores não são referidos por sua real condição de integrantes da plateia do dia; ao invés disso, os espectadores ganham um papel fictício – o de público presente no enterro da amiga das personagens. Em outro instante, as sete portas vermelhas do cenário de Fernando Marés tombam no chão borrando a fronteira, até então delimitada, entre bastidores e cena. Contudo, os bastidores pertencem à cena, tendo em vista que esse espaço, apesar de ocultado dos espectadores durante parte do espetáculo, vem à tona, desde o início, por meio das vozes das atrizes, escutadas por trás das portas. Nesse sentido, os terrenos são mais nebulosos do que claramente estabelecidos.
A dramaturgia – a cargo de Marcio Abreu e Patrick Pessoa, com colaboração de Newton Moreno e das atrizes – é propositadamente solta, sem encadeamento linear, dando vazão a transições abruptas (a exemplo do primeiro momento em que as atrizes surgem dublando). Essa estrutura não é um problema em si, ainda que a fragilidade do texto transpareça nos embates entre as personagens (a cena passional em que Mariana Lima arremessa uma cadeira contra uma porta é bastante dispensável). Seja como for, a situação de três amigas confrontadas com a morte de uma quarta, também atriz, funciona como espinha dorsal. E há “temas” concretos constantes no texto, como as reverberações íntimas decorrentes da percepção da passagem do tempo (a perda da juventude, a necessidade de expressar o que está para ser dito diante da perspectiva da morte). Atrizes de amplos recursos, Malu Galli, Mariana Lima e, em especial, Andrea Beltrão demonstram comprometimento com o projeto e as questões abordadas.
Principalmente no campo da dramaturgia, Nômades se apresenta como uma encenação intencionalmente rascunhada, inacabada, em processo, características ressaltadas com o possível intuito de sublinhar o vigor criativo de um trabalho movido pela inquietação. A analogia é questionável e o “resultado”, em parte, também. Em todo caso, a montagem suscita oportuna reflexão.