Bem-humorada denúncia dos estereótipos
Mateus Cardoso, Henrique Fontes e Robson Medeiros em A Invenção do Nordeste, montagem do Grupo Carmin (Foto: Rogério Alves)
Novo espetáculo do Grupo Carmin, A Invenção do Nordeste, atualmente em cartaz no Teatro Sesi, denuncia, por meio do humor, estereótipos ao colocar o público frente a dois atores estimulados ao aproveitamento de suas raízes nordestinas durante a preparação para um trabalho. Ao longo do processo, eles se veem confrontados com uma galeria de clichês normalmente empregada na difusão do universo nordestino – lugares-comuns estampados diante dos espectadores.
A tentativa de captar um Nordeste autêntico se manifesta na acentuação do sotaque, em especial no que diz respeito à musicalidade da fala, que determina uma expressão caricaturada. A encenação de Quitéria Kelly sinaliza que a busca pela verdade parte de um artifício – no caso, realçar a identidade nordestina – que, por si só, leva a um resultado postiço. De qualquer modo, o fato de os atores serem nordestinos não os credencia para os papéis, na medida em que a escolha do elenco sofre interferência direta de critérios mercadológicos.
A dramaturgia de Henrique Fontes e Paulo Capistrano, escorada no original homônimo de Durval Muniz de Albuquerque Jr., faz referências a obras emblemáticas do Nordeste que, porém, transcenderam fronteiras geográficas, como o filme de energia messiânica Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), de Glauber Rocha – lembrado num instigante jogo de espelhamento, no qual o ator, em cena, “executa” passagens do exemplar do Cinema Novo – e o romance A Pedra do Reino, de Ariano Suassuna, além da menção à Semana de Arte Moderna de 22.
Mas A Invenção do Nordeste parece ser uma encenação atravessada por certa ambiguidade. Se por um lado expõe chavões, descortinando-os diante da plateia, por outro dá a impressão de compactuar, em algum grau, com reducionismos nos instantes em que satiriza gêneros (tragédia, comédia), formatos (dança contemporânea, teatro experimental) e em que reproduz comentários acerca de trabalhos e condutas artísticas – as conhecidas falas sobre o hermetismo na adaptação para a televisão de A Pedra do Reino por Luiz Fernando Carvalho e a passionalidade de Fatima Toledo na preparação de atores no cinema. Às vezes, a montagem se distancia um pouco de seu foco temático, ainda que a conexão estabelecida pelos espectadores com as questões destacadas em cena e o noticiário atual minimize a sensação de dispersão.
Contudo, A Invenção do Nordeste traz momentos de inclusão dos integrantes do espetáculo em relação à problemática abordada, particularmente na cena em que um dos atores derrama pó de café no interior do contorno de um desenho do território brasileiro e os demais passam a defender uma ideia de nação e, logo após, de Nordeste genuíno, localizada, não por acaso, no Rio Grande do Norte, estado do Grupo Carmin. É uma defesa realizada a partir de argumentos evidentemente parciais. O comprometimento dos atores não se revela tão-somente através da ironia: também é sugerido ao emprestarem seus próprios nomes aos personagens.
Transitando entre o aparato multimídia e o teatro artesanal (na oportuna evocação das mortes de Lampião e Maria Bonita), A Invenção do Nordeste é um espetáculo divertido e, ao mesmo tempo, incômodo nas importantes discussões que suscita. A fluência do trio de atores – Henrique Fontes, Robson Medeiros e, principalmente, Mateus Cardoso – contribui de maneira decisiva para a boa resposta que a montagem vem obtendo.