Autorias integradas sem reiteração
Larissa Bracher em Genderless – Um Corpo Fora da Lei (Foto: Elisa Mendes)
O projeto Operação Rio Diversidade, em cartaz até o próximo sábado no Teatro do Sesi, é composto por quatro solos conduzidos por artistas diferentes – autores, diretores e atores. Idealizada por Marcia Zanelatto, a iniciativa, contudo, evidencia sintonia entre as suas partes, sem que esse entrosamento resulte em uniformização.
As abordagens de sexualidades distintas dos padrões pré-estabelecidos unem, de modo abrangente, os quatro textos. Em Genderless – Um Corpo Fora da Lei, escrito por Zanelatto, ocorre um ritual de despedida do próprio corpo por meio da evocação da jornada verdadeira de Norrie May-Welby, que, após viver 26 anos como homem, “renasce” em corpo feminino, mudança, porém, que não apazigua por completo sua íntima sensação de desencontro. A autora destaca o descompasso entre corpo e alma, a sexualidade como elemento de constituição do indivíduo (“De quem é o seu corpo com todas as suas intimidades?”) e lança uma questão: seria o personagem atravessado pela necessidade de ter todas as possibilidades, pela dificuldade de não abrir mão de qualquer alternativa e, assim, de lidar com a perda, ou portador de uma multiplicidade genuína (“há em meu corpo uma infinidade de órgãos extremamente sexuais”)?
A realidade também inspirou Joaquim Vicente em A Noite em Claro. O macabro assassinato de um homem por um garoto de programa com mais de 100 facadas traz à tona a morte brutal do encenador Luiz Antônio Martinez Corrêa na segunda metade da década de 1980. Na estrutura do texto, o ator (Thadeu Matos) transita entre os dois papéis antagônicos – o do michê que, num violentíssimo ato catártico, revela uma sexualidade mal resolvida (“De quantas facadas você precisa para eliminar o seu ódio?”) e o da vítima. A repressão ganha tratamento diverso em Como Deixar de Ser, de Daniela Pereira de Carvalho, sobre uma mulher que, sufocada, externa a ânsia por contato com outra, algo jamais concretizado (“Nós nunca nos vimos nuas. Apenas parte do corpo”). A personagem expressa culpa pelo que sente (“Eu nunca vou ter coragem de colocar para fora esse desejo estocado”), herança do convívio com a mãe. Não consegue exercer o desejo e nem se manter em permanente opressão. A pluralidade sexual, presente em Genderless – Um Corpo Fora da Lei, é realçada, de maneira bem menos promissora, em Flor Carnívora, texto estéril de Jô Bilac ambientado numa sociedade vegetal.
As partes de Operação Rio Diversidade não têm no universo temático o único ponto em comum, tendo em vista as conexões entre as contribuições artísticas que se somam no espetáculo. Apesar de capitaneados por diretores variados, os monólogos contam com os mesmos profissionais em áreas como as de cenografia (Daniel de Jesus) e iluminação (Daniela Sanchez). A integração fica especialmente clara nas propostas de iluminação, o que não significa que se reiterem umas às outras. Parece existir uma conceituação na concepção da luz, que restringe propositalmente o acesso integral dos espectadores às imagens cênicas (em muitos momentos, o público vê “tão-somente” fragmentos dos atores), descortinadas aos poucos. Em Flor Carnívora há um longo trecho no escuro. Quando a luz volta, a atriz Gabriela Carneiro da Cunha demora a mostrar o rosto à plateia. Em Como Deixar de Ser predominam as gradações sutis. Em determinados solos, os atores manipulam, em certa medida, a luz sobre os próprios corpos. São os casos de Uma Noite em Claro, no qual a silhueta do ator “estampa” a tela, onde é projetado, logo após, seu rosto, e de Genderless – Um Corpo Fora da Lei, no qual o rosto de Larissa Bracher é parcialmente iluminado pela tela de um aparelho.
Já no campo da cenografia há menos unidade, o que não deve ser considerado como demérito. Em Como Deixar de Ser é notável a concentração de objetos antigos (vitrola, baú, abajur), de acordo com o perfil da personagem, e em Uma Noite em Claro causa impacto a mesa repleta de facas espetadas. Os figurinos sintetizam a condição dos personagens (como o traje masculinizado em Genderless – Um Corpo Fora da Lei) ou confirmam seus estados emocionais (as cores fechadas sublinhando a repressão da mulher de Como Deixar de Ser). A música é uma escolha constante para encerrar os solos – ocasionalmente, entoada pelos atores.
Os diretores potencializam as atuações. Em Genderless – Um Corpo Fora da Lei, Guilherme Leme Garcia valoriza a partitura física de Larissa Bracher, que domina a cena com voz suave e densa. Em Como Deixar de Ser, Renato Carrera aproxima Kelzy Ecard da frequência contundente de uma personagem em instante de extravasamento. Em Uma Noite em Claro, Cesar Augusto faz com que Thadeu Matos oscile de forma expressiva entre os extremos da situação. Em Flor Carnívora, Ivan Sugahara leva Gabriela Carneiro da Cunha a adotar um tom de explanação diante da plateia. Interligados por breves aparições de Magenta Dawning, que contrastam com a dramaticidade da maioria dos textos, os monólogos de Operação Rio Diversidade, em que pese uma eventual irregularidade, apresentam apreciável vínculo no palco.