Aula de transcendência e miséria
Christiane Torloni é Maria Callas em Master Class (Foto: Marcos Mesquita)
Terrence McNally não se limita a biografar Maria Callas em Master Class, texto que ganha nova encenação, atualmente em cartaz no Teatro Clara Nunes, protagonizada por Christiane Torloni e dirigida por José Possi Neto, quase 20 anos depois da montagem conduzida por Jorge Takla e com Marília Pêra no papel da célebre cantora lírica. O autor contrasta o perfeccionismo de Callas na tentativa constante de alcançar resultado artístico sublime com a miséria conjugal que norteava sua vida afetiva, particularmente no que se refere ao casamento com o magnata Aristóteles Onassis.
Esses planos opostos são estruturados de maneira diversa pelo dramaturgo. A Callas que se doa de modo integral às personagens, concebidas a partir da construção imaginária de atmosferas minuciosas (ultrapassando, portanto, a ambição reduzida da cantora que se satisfaz em resolver o papel tão-somente à base de técnica), vem à tona na master class, na atividade como professora extremamente exigente exercida na Juilliard School, na década de 1970. Já a mulher submissa às contundentes demonstrações de agressividade do marido extravasa por meio de solilóquios. Mas, a julgar pelo texto de McNally, não seria correto separar a jornada profissional da pessoal. Afinal, trata-se de uma artista que não entende a interpretação como fingimento, e sim como ato de revelação, de exposição íntima.
Ainda que Callas tenha se notabilizado pela singularidade, essa prática do ofício pode ser detectada em outros artistas de exceção, como a também diva Eleonora Duse, que se entregou sem reservas, com potência quase kamikaze, às suas personagens, encarnando-as com total comprometimento. Há, claro, especificidades próprias a Duse que não dizem respeito à Callas, como a determinação em se anular em prol do autor, em se colocar como mero canal entre o texto e a plateia. O objetivo, porém, não era atingido por Duse, na medida em que sua atuação monopolizava o público, como analisa a professora e pesquisadora Beti Rabetti no texto Eleonora Duse por Silvio D’Amico: a Interpretação que se Esconde.
Apesar do oportuno retrato de Maria Callas traçado por McNally, Master Class possui fragilidades dramatúrgicas acentuadas, até certo ponto, pela montagem de José Possi Neto. A caracterização estereotipada dos alunos de Callas é realçada pelas atuações – de Julianne Daud, que participou do primeiro espetáculo, Bianca Tadini e Leandro Lacava e Thiago Rodrigues, todos se destacando mais no terreno do canto, com Thiago Soares compondo o contrarregra que não dimensiona Callas – e pelos figurinos de Fabio Namatame (confeccionados pela boutique Claudeteedeca), mais sóbrios para Callas. Em interpretação bem dosada, Christiane Torloni investe na ironia, no sarcasmo, no humor cortante da diva, imperantes na relação com os alunos, e projeta a catarse nos instantes de apresentação do sofrimento ao lado de Onassis. Mencionados como integrantes da master class de Callas, os espectadores são incluídos na cena, mesmo que não por meio de interatividade direta.
A montagem é complementada pela cenografia de Renato Theobaldo, que não procura reconstituir de forma tradicional o espaço da master class, e a iluminação de Wagner Freire, mais neutra para o plano das aulas, mais intensa para os da dramática esfera matrimonial. Restrições à parte, Master Class é mais um capítulo na bem-sucedida parceria entre Torloni e Possi Neto, que rendeu encenações expressivas, como Lobo de Ray-Ban, de Renato Borghi, e Salomé, de Oscar Wilde.