Ato de revelação
Círculo da Transformação em Espelho, montagem de Cesar Augusto, em cartaz no Sesc Copacabana até o próximo dia 29 (Foto: Rodrigo Castro)
Em Círculo da Transformação em Espelho, a americana Annie Baker dá a impressão de se limitar a mostrar o cotidiano de alunos e professora num curso de teatro durante semanas. Destaca os vínculos entre eles – tanto os já existentes, anteriores à realização do próprio curso, quanto os gerados a partir da convivência nas aulas –, evidenciados, às vezes, através de exercícios cênicos. Ainda que não sejam exatamente originais (ao contrário, soam conhecidos dos que têm intimidade com a prática teatral), os exercícios servem à dramaturgia de Baker, voltada, aqui, para a aproximação dos personagens em relação às histórias dos outros e para a exposição pessoal.
Dois exercícios são bastante representativos: aquele em que os alunos escrevem anonimamente um segredo num papel e, em especial, em que cada um interpreta vivências de algum colega, apropriando-se de experiências diversas das suas, operação que pode, inclusive, ser conectada ao ofício do ator. Não por acaso, ao longo da peça de Baker, traduzida por Rafael Teixeira, é possível lembrar de Jogo de Cena, celebrado documentário de Eduardo Coutinho, que entrelaçou depoimentos reais com interpretados. Nem sempre era fácil para o público identificar o depoimento “verdadeiro” e o “falso” devido à qualidade das atuações de quem interpretava a vida do outro.
Como no filme de Coutinho, os personagens de Baker se expressam por meio e por dentro de relatos que não se referem às suas biografias, o que talvez torne o ato de revelação menos transparente. Mas, mesmo que abordassem suas vivências, estariam necessariamente ficcionalizando, na medida em que transmitindo o modo como internalizaram os acontecimentos – e não os acontecimentos puros, sem o filtro da subjetividade. Existem, nesse sentido, interferências, autorias, na maneira como as histórias e, consequentemente, as imagens são difundidas.
Apesar da problematização da transparência, a cenografia de Mina Quental para a montagem dirigida por Cesar Augusto, em cartaz na arena do Sesc Copacabana, reúne espelhos, que refletem as imagens dos personagens e dos espectadores. Unidos, formam uma superfície, separados, porém, pelos atores no decorrer do espetáculo, como identidades repartidas, destituídas de suas totalidades. Há uma proposta de espelhamento entre os espectadores e a posição de espectadores dos alunos diante das apresentações de colegas. Ao invés de valorizar aquele que fala, Cesar Augusto realça, em certos momentos, os que assistem. O cenário se integra à iluminação de Adriana Ortiz, a exemplo da cena final.
A utopia da transparência também vem à tona no registro interpretativo do elenco, sintonizado com uma atuação invisível, espontânea, não armada, mas que encobre uma construção feita durante os ensaios. Alexandre Dantas, Carol Garcia, Fabianna de Mello e Souza, Júlia Marini e, um pouco mais, Sávio Moll demonstram entrosamento com essa vertente. Cesar Augusto imprime, em sua direção, essa invisibilidade apenas aparente, a julgar pelo emprego adequadamente discreto das criações que constituem a cena.