Ato de desvendamento
“As famílias deixam de se ver como se pudessem se desfazer, mas sabem que não podem”, observa Gabino Rodríguez, ator e responsável por Montserrat, espetáculo autobiográfico que integrou a programação do Festival Cena Brasil Internacional, no Centro Cultural Banco do Brasil. A frase se aplica à sua própria trajetória, particularmente no que se refere à (falta de) relação com a mãe (María Montserrat Gerardina Lines Molina), desaparecida há muitos anos.
Gabino afirma que vem acertando as contas por meio da ficção. Por mais que descortine o passado através de material pessoal (vídeos familiares e cartas), sabe que essa evocação implica em interpretação e não na reconstituição dos fatos como se deram. Nos vídeos projetados em cena, o espectador se depara com trechos de diário que entrelaçam a jornada íntima, privada, com a afetação diante de acontecimentos do mundo; com imagens da mãe desde a infância; com registros dos pais em 1979; e com a caminhada rumo ao túmulo simbólico da mãe. Nas cartas, depositadas pelo ator sobre o palco sobressaem a preocupação em não expor levianamente a família, apesar da urgência de revelar a trama na qual se viu envolvido desde cedo, e um anúncio de suicídio: “nasci com a morte dentro e morro para deixar de sentir, para parar o sofrimento”.
O ator adota registro interpretativo pautado pela naturalidade de quem está trazendo à tona sua história, contrastada, em algum grau, com o adereço no figurino (um cocar), com a utilização de um tom mais contundente à medida que a encenação avança, com discretos movimentos de dança e com a composição de um personagem (o detetive contratado para desvendar o paradeiro da mãe). O ator manipula o cenário, formado, além da tela que serve às projeções, por diversas plantas dispostas nas laterais do espaço. Em determinado momento, o ator espalha as plantas pelo espaço, talvez numa tentativa de reconstituir o local escolhido para o túmulo simbólico da mãe (uma árvore no meio de uma floresta) ou de complementar cenicamente a imagem da floresta exibida na tela, realizando, nesse caso, uma interação entre teatro e cinema.
Montserrat se inscreve em importante vertente dos dias de hoje, calcada na necessidade dos artistas de se colocarem em primeira pessoa, como personagens de seus projetos, de apresentarem ao público vivências particulares, ainda que expostas em cena por meio de construções. Há um evidente tensionamento da noção tradicional de personagem, conforme pode ser percebido em variados trabalhos – no teatro, nos últimos tempos, é possível citar Ficção, da Cia. Hiato, Luis Antonio – Gabriela, montagem de Nelson Baskerville, Festa de Separação, Conversas com meu Pai, ambos capitaneados pela atriz Janaína Leite, Estamira, a cargo de Dani Barros, e O Narrador, de Diogo Liberano. Os artistas enveredam pelo documental, sem perderem de vista seus comprometimentos – e, nesse sentido, suas parcialidades – em relação às histórias que contam.
Texto publicado no site www.teatrojornal.com.br