Artes em oportuna interação
Cão sem Plumas, novo espetáculo de Deborah Colker, apresentado no Teatro Municipal (Foto: Cafi)
Em seu novo trabalho – Cão sem Plumas, que teve quatro apresentações no Teatro Municipal –, Deborah Colker conjuga diferentes manifestações artísticas – dança, literatura e cinema. Procurou materializar o poema homônimo de João Cabral de Melo Neto, publicado em 1950, em imagens, seja por meio da coreografia, seja do filme que dirigiu ao lado do cineasta Claudio Assis, exibido em telão ao fundo da cena, com o qual os bailarinos interagem.
A contracena entre dança e cinema não cai na armadilha da reiteração. As imagens do filme e a coreografia formam uma espécie de espessura complementar. Ocasionalmente ocorre algum espelhamento, com o bailarino realizando movimento idêntico ao que o espectador vê na tela. Mas essa semelhança logo se desfaz para que um real intercâmbio se estabeleça. Num dado momento, a vegetação estampada no filme é simbolizada por meio de uma cortina de tiras que surge no palco. Apesar da associação imediata, não há repetição. A arte cênica é valorizada na sua limitação, na riqueza da sugestão, no estímulo à imaginação. Concretizar tudo diante do público, além de impossível, se torna menos importante.
Existe, em todo caso, o risco da concorrência entre filme e dança. As imagens em preto e branco reverberam com força. Talvez se sobreponham à cena, marcada por tonalidade ocre e iluminação de intensidade cuidadosamente medida (de Jorginho de Carvalho). O telão se agiganta no palco, bastante despojado de elementos – apenas gaiolas dispostas nas laterais, que, ao final, são trazidas para o centro da cena (cenografia de Gringo Cardia). As gaiolas, onde os homens-caranguejos entram, e determinadas imagens do filme remetem inevitavelmente a Caranguejo Overdrive, espetáculo d’Aquela Cia., a julgar pela partilha das mesmas referências (o geógrafo Josué de Castro, o manguebeat), ainda que a encenação de Marco André Nunes tenha evocado o Rio de Janeiro da segunda metade do século XIX para abordar a perpetuação da lógica da exclusão.
O filme destaca o que no palco permanece ocultado. As identidades dos bailarinos (Aline Machado, Bianca Lopes, Dilo Paulo, Filipe Escudine, Isadora Amorim, Jaime Bernardes, Leony Boni, Olivia Pureza, Phelipe Cruz, Pilar Giraldo, Rosina Gil, Uatila Coutinho e Victor Vargas) só vêm à tona no filme, quando seus rostos aparecem individualizados. No palco, enquanto executam a coreografia sintonizada com a música de Jorge Dü Peixe, Lirinha e Berna Ceppas, despontam como conjunto que quase não é identificado fora da coletividade, unificados pelas malhas poluídas (figurinos de Claudia Kopke) e pelos rostos parcialmente encobertos.
O cinema de Claudio Assis é reconhecido no filme que integra o espetáculo, em especial no que diz respeito a Febre do Rato (2013), também em preto e branco e ambientado às margens do Rio Capibaribe. Resultado de uma imersão de Colker, Assis e da companhia, que fizeram uma viagem de 24 dias entre o sertão e Recife, o filme expõe uma realidade contundente. Não se afirma, porém, como objeto de denúncia. É perceptível uma suspensão do real, tanto pelo uso ambíguo do preto e branco – escolha estética que, no senso comum, pode ser considerada como acentuação da autenticidade, mas que aqui (como em muitos outros trabalhos) sinaliza certa estilização –, quanto por imagens poderosas, como a da árvore invertida.
carmattos
2 de agosto de 2017 @ 12:03
Infelizmente perdi o espetáculo, mas felizmente recuperei um pouco dele com o seu texto. Foi ótimo.
danielschenker
2 de agosto de 2017 @ 12:09
Muito obrigado, Carlinhos.