Acúmulo de experiências num único teatro

Claudio Mendes, Ana Barroso, Marcelo Escorel, Xando Graça, Carmen Frenzel e Thiago Justino: elenco reunido (Foto: Dalton Valério)
A recente reabertura do Teatro Glaucio Gill após um período de reformas ganha homenagem à sua história por meio de espetáculo que realça a importância do encenador Aderbal Freire-Filho e de Glaucio Gill, artista que sofreu ataque cardíaco fatal durante seu talk show exibido na televisão. Diante da morte precoce de Glaucio, em 1965, o espaço, antes chamado Teatro da Praça, foi rebatizado, no ano seguinte, com o seu nome. Mas o foco desse trabalho, que mistura épocas, é a fase em que Aderbal esteve à frente do teatro, entre 1989 e meados da década de 1990.
Aderbal lutou para se estabelecer no Teatro Glaucio Gill, que, naquele momento, também se encontrava fechado e em condições muito precárias. Fundou ali sua companhia, o Centro de Demolição e Construção do Espetáculo, inaugurando, com a primeira montagem do grupo – A Mulher Carioca aos 22 Anos, a partir do livro de João de Minas –, a vertente do romance-em-cena, que tinha como regra a não adaptação de obras literárias para o palco. Os livros deveriam ser ditos integralmente pelos atores (por mais que Aderbal tenha feito cortes no decorrer das trajetórias de montagens como essa), que transitavam entre a narração e a vivência dos acontecimentos e se multiplicavam entre vários personagens, atribuindo aos objetos de cena os mais variados sentidos.
A companhia permaneceu no teatro, onde apresentou outras montagens significativas, como Turandot, de Bertolt Brecht, que, na versão de Aderbal, teve um complemento no título (ou o Congresso dos Intelectuais). Vale dizer que as realizações da companhia não ficaram restritas ao Glaucio Gill. Aderbal rompeu com os limites geográficos do teatro e ocupou espaços públicos, como o Palácio do Catete – encenando, nos ambientes onde, de fato, ocorreram as últimas horas de vida do presidente Getúlio Vargas, O Tiro que mudou a História – e pontos determinantes do Centro do Rio de Janeiro, percorridos de ônibus pelos espectadores – na reconstituição da via-crúcis de Tiradentes (em Tiradentes, a Inconfidência no Rio). Aderbal deu continuidade à jornada do Centro de Demolição e Construção do Espetáculo no Teatro Carlos Gomes. Depois migrou para o Teatro Ziembinski, mas as encenações concebidas nesse espaço, apesar de Aderbal tê-lo conduzido ao lado de habituais parceiros profissionais – Gillray Coutinho, um dos principais elementos do grupo, e Dudu Sandroni –, estiveram menos ligadas à companhia.
Em Show do Glaucio apresenta o teatro aberto de Aderbal, espetáculo dirigido por Leonardo Netto, o público se depara com uma fictícia entrevista de Aderbal Freire-Filho no programa de Glaucio Gill. No texto de Gillray Coutinho, Aderbal aborda, em conversa, seu vínculo com o Teatro Glaucio Gill e o frutífero percurso da companhia. A estrutura dramatúrgica, porém, não se mantém fincada no realismo. Coloca essa linguagem em suspensão ao inserir as presenças de personagens de textos montados pelo Centro de Demolição e Construção do Espetáculo, casos das já citadas A Mulher Carioca aos 22 Anos e Turandot e de Lampião, o Rei Diabo do Brasil. Os tributos prestados a Glaucio Gill – não “só” através desse espetáculo como de uma peça de sua autoria, a comédia de costumes Toda Donzela tem um Pai que é uma Fera, em cartaz no mesmo teatro – e, em especial, a Aderbal Freire-Filho são louváveis, considerando a relevância de ambos para o teatro brasileiro (e para outros países da América do Sul e Europa, em se tratando de Aderbal) e a pouca valorização do passado, tendência dos dias de hoje. Mas há uma evidente dificuldade de desenvolver a dramaturgia, ainda mais quando o destaque recai sobre os mencionados personagens dos espetáculos, que fazem reivindicações durante o programa de Glaucio Gill.
O elenco, formado por integrantes do Centro de Demolição e Construção do Espetáculo, demonstra adesão à proposta da encenação, mais voltada para a composição de tipos do que de personagens. Dentro dessa linha, Claudio Mendes faz divertida recriação de Glaucio Gill, com ajustado timing, e Marcelo Escorel, em contraste, traz à tona o perfil despojado e comunicativo de Aderbal. Os demais atores encontram menos oportunidades no texto. Ana Barroso, após entrada promissora, não tem como suprir o esvaziamento de função da assistente de palco. Xando Graça, Carmen Frenzel e Thiago Justino procuram marcar, de modo vigoroso, suas intervenções, mas são prejudicados pela escassez do material dramatúrgico. Os personagens verdadeiros e ficcionais surgem mesclados no ambiente do talk show, evocado em cores vibrantes na cenografia de Mina Quental, e caracterizados com humor nos figurinos de Luiza Fardin. Essa atmosfera, oscilante entre certa fidelidade ao real e o mergulho no fantasioso, é complementada pela iluminação de Aurelio de Simoni.
Show do Glaucio apresenta o teatro aberto de Aderbal é um espetáculo atravessado por fragilidades dramatúrgicas e cênicas, que, contudo, se justifica como reverência (mas sem a formalidade do termo) a emblemáticos artistas da cena brasileira.
SHOW DO GLAUCIO APRESENTA O TEATRO ABERTO DE ADERBAL – Texto de Gillray Coutinho. Direção de Leonardo Netto. Com Claudio Mendes, Marcelo Escorel, Ana Barroso, Xando Graça, Carmen Frenzel e Thiago Justino. Teatro Glaucio Gill (Praça Cardeal Arcoverde, s/nº). Qui. e sex., às 20h. Sessões extras nos dias 27 e 28, às 18h. Ingressos: 5,00 e R$ 2,50 (meia-entrada).