A suspensão do cotidiano
Eloísa Elena em Facas nas Galinhas: percepção da subjetividade (Foto: Annelize Tozetto)
FESTIVAL DE CURITIBA / SÃO PAULO – “É assim que eu sei que Deus existe. Eu olho árvore, digo ‘árvore’ e sigo em frente. Mas há mais de Deus na árvore que eu não conheço”, afirma a personagem principal de Facas nas Galinhas, que empreende jornada de autoconhecimento a partir do contato com um moleiro, que a torna mais consciente da relação um tanto autoritária travada com o marido numa vila imersa em crenças populares.
Texto do escocês David Harrower, Facas nas Galinhas extrai a sua força dos contrastes. Opõe o concreto ao abstrato, o real ao metafórico através de uma personagem que aprofunda a percepção da própria subjetividade em meio a um cotidiano em que só a praticidade tem valor. Além do universo temático, a construção da peça merece ser destacada. As falas oscilam entre o poético (em especial, nas descrições do movimento da natureza), o rude e o íntimo. Conversas do dia a dia são atravessadas por algo deslocado gerando uma espécie de suspensão, de estranhamento.
O diretor Francisco Medeiros evidencia investimento numa cena refinada em que tudo é revelado diante do público. Os diversos ruídos realizados ao longo da encenação são produzidos por meio de cordas manipuladas pelos atores fora do centro da ação. O uso do microfone potencializa uma voz impositiva bem distante da suavidade da voz interna da protagonista. A cenografia de Marco Lima, composta por uma grande estrutura circular, dimensiona o arcaico no vínculo entre os personagens. Os figurinos, também de Marco Lima, são adequadamente neutros. A iluminação de Marisa Bentivegna amplia a aridez ao aproveitar a área “inutilizada” do espaço do Tucarena e realça os momentos sem texto do espetáculo. A trilha sonora de Dr Morris atua sobre a cena com precisão cirúrgica.
Os atores criam personagens dotados de certo grau de complexidade. Eloísa Elena valoriza o processo de transformação de uma mulher que tenta ocultar sua hesitação e se mostra particularmente expressiva nos instantes de silêncio. Cláudio Queiroz imprime autoridade ao marido sem enveredar pela linearidade. Thiago Andreuccetti é um moleiro que se projeta como presença desestabilizadora.
O crítico viajou a convite da organização do festival.