A fúria do corpo
Julia Bernat e Johnny Massaro em Cara de Fogo (Foto: Renato Mangolin)
O corpo não parece ser fonte de prazer, mas de angústia e dor para os personagens jovens de Cara de Fogo, texto do dramaturgo alemão Marius Von Mayenburg que ganhou encenação de Georgette Fadel atualmente em cartaz no Teatro III do Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB). O adolescente Kurt expressa recusa pelo crescimento (evidenciado pelo corpo em transformação). “Eu não quero começar isso para ficar com cheiro de pai”, afirma, referindo-se ao ato de fazer a barba. É como se o personagem sentisse necessidade de frear um processo natural – processo sintetizado pela irmã, Olga. “Nós também ficaremos adultos em algum momento. Não dá para evitar”, observa.
Kurt mantém uma percepção infantil em relação ao sexo, a julgar pelo assombro diante da nudez da mãe (“Para ti não basta ser minha mãe. Precisa ser mulher”). O espanto de Kurt frente ao corpo nu da mãe, porém, também diz respeito ao fato de ela se exibir para ele. Já para Olga a desestabilização suscitada pelo sexo não decorre de uma experiência avassaladora, e sim do contrário. “Deveria ser uma coisa que me despedaçasse inteiramente para que eu não pudesse sair. Mas não aconteceu nada”, constata, após o primeiro encontro sexual com o namorado, Paul.
O texto de Von Mayenburg é composto por cenas curtas que se sucedem, na montagem de Fadel, de modo áspero, rascante. A diretora, contudo, investe em estranhezas que soam arbitrárias, em especial o sotaque carregado de Soraya Ravenle e a preservação da segunda pessoa do tempo verbal na tradução (de Leticia Liesenfeld). As ferramentas manipuladas pelos atores durante a apresentação reforçam o caráter brutal que impera nos elos entre os personagens. Ainda que esses elementos nem sempre tenham inclusão plenamente justificada na cena, há eventuais bons aproveitamentos, a exemplo do instante em que são encaixados na roupa de Olga (figurinos de Beth Passi de Moraes e Joana Passi de Moraes).
A cenografia de Aurora dos Campos confina os personagens num recorte de ambiente, numa quina, que se torna poluída pelas marcas de presença. A concepção, apesar de instigante, evoca padrão de cenário constante em montagens do argentino Daniel Veronese. A iluminação de Tomás Ribas oscila entre a penumbra intencional e a utilização de cores vibrantes que fracionam o espaço reduzido. A trilha sonora de Davi Guilhermme sugere tensão e, por outro lado, comentário bem humorado acerca de Paul.
Na condução do elenco, Georgette Fadel não busca uma unidade interpretativa. O problema principal não reside na ausência de uma sintonia entre os registros, mas na falta de embasamento de determinadas escolhas. Soraya Ravenle, em que pese o mencionado sotaque gratuito, sinaliza, ocasionalmente, a agonia da mãe diante do filho cada vez mais encarcerado num mundo hermético e violento. Isaac Bernat, mesmo com os momentos de exacerbação do pai que acompanha, fascinado, relatos de assassinatos de prostitutas estampados no jornal, imprime certa neutralidade que faz do personagem uma figura sem características muito específicas. Johnny Massaro realça, por meio de inclinação corporal e de tom contundente conferido às palavras, o estado emocional do atormentado Kurt. Julia Bernat tem atuação segura, concentrada, despida de efeitos. Alexandre Barros projeta o deslocamento de Paul.
Através de Cara de Fogo, Marius Von Mayenburg não confronta o público “apenas” com a estrutura de uma família disfuncional. À medida que Kurt adquire as feições de um incendiário, o quadro descortinado se aproxima de uma espécie de estudo de caso, singular. A montagem de Georgette Fadel não procura tão-somente transportar o texto para a cena em abordagem destituída de apropriação autoral – postura, em si, positiva –, mas a diretora talvez não tenha se preocupado suficientemente com a consistência de suas proposições.
Texto publicado no site www.teatrojornal.com.br