Uma justa homenagem
Othon Bastos relata sua trajetória profissional em montagem atualmente em cartaz no Teatro Vannucci (Foto: Beti Niemeyer)
O caráter de homenagem define uma realização como a de Não me Entrego, Não!. Uma celebração a Othon Bastos, pela importância de sua trajetória em variados meios artísticos e pelo fato de se manter, aos 91 anos, em plena atividade numa época como a atual, em que veteranos enfrentam dificuldade em encontrar oportunidades de trabalho. Não por acaso, o espetáculo, em cartaz no Teatro Vannucci, vem gerando manifestações emocionadas.
Othon Bastos traça, com informalidade, uma panorâmica de seu percurso, desde a infância – quando chegou a ser desaconselhado por uma professora a seguir caminho artístico – até a consagração profissional – evidenciada em parcerias e atuações no cinema (em Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha, São Bernardo, de Leon Hirszman, e Capitu, de Paulo César Saraceni) e no teatro (a relevância de Paschoal Carlos Magno e seu Teatro Duse, o reportório de peças encenado com a esposa, a atriz Martha Overbeck, a montagem de O Jardim das Cerejeiras no Teatro dos 4). Nesse painel, atravessado pelo esforço em se distanciar de determinados estereótipos (como o do cangaceiro, após a aclamação em Deus e o Diabo…), os feitos na televisão não são destacados.
Responsável pela dramaturgia e pela direção, Flavio Marinho não impõe interferências em termos de concepção cênica. Deixa o palco livre para Othon Bastos relatar sua jornada. Mesmo com uma marcação concentrada no proscênio, Othon não se engessa. Esbanja energia, perceptível na narração espontânea e desenvolta, no corpo em permanente movimento e, em especial, na voz firme e contundente.
Acompanhando Othon, Juliana Medella auxilia o ator em eventuais lapsos de memória. A opção de assumir uma presença que remete ao antigo ponto – profissional que, contudo, não ficava em cena, e sim numa espécie de fosso localizado no palco, às vistas dos atores, mas não do público – se mostra acertada. Na noite em que o espetáculo foi conferido, Juliana intercedeu um pouco demais na fala de Othon, aparentemente buscando uma fidelidade ao texto, postura que reduziu a fluência do depoimento. Ainda assim, esse senso de medida deve mudar a cada apresentação. E, seja como for, Othon e Juliana interagem de modo integrado.
Flavio Marinho ordena o fluxo de acontecimentos e lembranças de Othon Bastos num texto intencionalmente não autoral, que serve de veículo à exposição de uma carreira. Não significa que o elo de Flavio com o projeto seja impessoal. Ao contrário. Em sua dramaturgia, louva, por meio de referências afetivas, o refinamento do passado, característica detectada na recriação da atmosfera juvenil dos anos 1950 e 1960 em Splish Splash, nas diversas menções, em algumas de suas peças (Salve Amizade, Os 7 Brotinhos, Quatro Carreirinhas), a artistas emblemáticos, sejam brasileiros ou estrangeiros, que simbolizam um universo efervescente, nas reverências a figuras lendárias, como Cauby Peixoto (Cauby! Cauby!) e Judy Garland (Judy: O Arco-Íris é Aqui), e na recordação da Jovem Guarda (Sessão da Tarde). São reminiscências repletas de sabor nostálgico, geralmente contrapostas à degradação cultural dos dias de hoje.
Como autor, Flavio valoriza a história, as consistentes heranças das gerações anteriores. Em Não me Entrego, Não!, sinaliza essa preocupação de forma algo artificial (“momento google” – expressão que anuncia instantes de revisionismo), recurso, porém, que não diminui a pertinência da iniciativa. Além disso, na obra de Flavio nem tudo é necessariamente ruim no aqui/agora. A prova está na continuidade, repleta de vitalidade, de Othon no ofício. As principais contribuições artísticas do ator surgem estampadas numa tela de fundo (cenografia de Ronald Teixeira), que, apesar de sobrecarregada visualmente, dimensiona, de maneira sintética, a extensão e a magnitude de sua carreira.
Não me Entrego, Não! pode fazer a plateia evocar outro tributo a um ator: Sergio 80, montagem intimista – apresentada bem próxima do público – em que Sergio Britto comemorou seus 80 anos por meio de um apanhado minucioso de seu trajeto na profissão. Nesse novo trabalho, Othon Bastos impera em cena. Flavio Marinho propositadamente evita imprimir uma assinatura autoral na dramaturgia e na direção, mas também não se anula, a julgar pela coerência da realização em relação aos seus projetos já concretizados.
NÃO ME ENTREGO, NÃO! – Texto e direção de Flavio Marinho. Com Othon Bastos e Juliana Medella. Teatro Vannucci (R. Marques de São Vicente, 52/3º andar – Shopping da Gávea). De sex. e dom. às 20h, sáb., às 20h30. Ingressos: sex. e dom., R$ 100,00 e R$ 50,00 (meia-entrada), sáb., R$ 120,00 e R$ 60,00 (meia-entrada).