Um mundo em retalhos
Tati Christine, Gab Lara e Gui Figueiredo em Querido Evan Hansen, espetáculo em cartaz no Teatro Multiplan (Foto: Carlos Costa)
Querido Evan Hansen é um exemplo de produto que se expande para novos formatos artísticos em decorrência da ampla adesão de público. Esse musical estrangeiro, que já foi adaptado para o cinema e para a literatura, desembarca na cena brasileira – em espetáculo dirigido por Tadeu Aguiar, atualmente em cartaz no Teatro Multiplan –, destacando questões comportamentais flagrantes nos dias de hoje.
Por meio da acidentada jornada de um adolescente – o Evan Hansen do título, que inventa histórias a respeito de um colega de escola que acaba de cometer suicídio –, a peça de Steven Lenson (com músicas e letras de Benj Pasek e Justin Paul) aborda a dificuldade de pertencimento dos jovens e o consequente enclausuramento em cotidianos solitários. Para afirmarem as próprias existências, não hesitam em divulgar informações falsas e enveredam pela exposição ininterrupta na esfera virtual. Conquistam popularidade, mas se veem confrontados com o julgamento instantâneo e cruel das redes sociais. Como se pode perceber, o autor traça uma radiografia analítica da juventude contemporânea.
A encenação de Tadeu Aguiar coloca o espectador diante de um mundo em retalhos, perspectiva sugerida na cenografia (de Natália Lana) composta de fragmentos de ambientes. A estrutura circular, que remete a armários de high school, se abre descortinando pedaços de recintos das casas, locais em que a ação se desenrola. Há uma escada sintetizando o espaço da escola e tiras geométricas suspensas onde são projetadas imagens de partes dos corpos e da natureza, além do descartável excesso de estímulos e da interação meteórica tão típicos do aqui/agora.
A intencional incompletude, evidenciada nos mencionados elementos simbólicos do cenário, também se manifesta na apresentação parcial dos personagens, resumidos a suas características centrais. Há o protagonista, que transita, de forma abrupta, da reclusão ao reconhecimento, a mãe sobrecarregada e empenhada, os pais enlutados, o rapaz agressivo e os colegas ansiosos e viciados em exposição virtual, todos com perfis realçados nos figurinos de Ney Madeira e Dani Vidal.
O texto não fornece ao público retratos multifacetados – e nem essa é a proposta da dramaturgia -, mas um panorama de almas conflituadas, algumas tomadas por angústia lancinante. Apesar do considerável tamanho da produção, esse musical se diferencia de tantos outros ao priorizar tonalidades mais melancólicas em detrimento das habituais cores solares e esfuziantes. Uma concepção estética que parece ter norteado a iluminação de Dani Sanchez.
Sob a direção musical de Liliane Secco, os atores externam, por meio do canto, a desestabilização emocional de seus personagens, bem como eventuais revelações que movem a “trama”. Cada um dos integrantes do elenco demonstra afinação com os temperamentos determinados pelo autor. Gab Lara dimensiona, na exata medida, a fragilidade do protagonista e as alternâncias afetivas atravessadas por ele durante o texto. A introspecção de Evan Hansen não restringe a expressividade da interpretação do ator. Hugo Bonemer valoriza, através da contundência vocal, a revolta do rapaz extremado. Thati Lopes transmite o embate vivenciado pela jovem envolvida na tragédia familiar, mas munida de visão crítica. Gui Figueiredo e Tati Christine imprimem naturalidade às intervenções de seus personagens. Vannessa Gerbelli e Flavia Santana potencializam a intensidade dramática do sofrimento das mães. Mouhamed Harfouch tem possibilidades de atuação limitadas pela função reduzida do pai no texto.
Ao longo dos anos, Tadeu Aguiar não vem se fixando num modelo único de espetáculo. Investe de maneira decidida no musical – mas não “apenas” nessa vertente –, realiza montagens de porte variável – ainda que com certa tendência à grande produção –, aposta em dramaturgias de nacionalidades distintas – oscilando entre a brasileira, autoral (a cargo de Eduardo Bakr), e a norte-americana – e reúne elencos formados majoritariamente por artistas negros – iniciativa que evoca a praticada, décadas atrás, por Sergio Britto no seu período à frente da programação do Teatro Delfim, marcada por montagens de textos brasileiros. Em Querido Evan Hansen, o diretor conduz uma encenação inscrita na tradição do musical e, ao mesmo tempo, portadora de particularidades dentro do gênero.
QUERIDO EVAN HANSEN – Texto de Steven Lenson. Músicas e letras de Benj Pasek e Justin Paul. Direção de Tadeu Aguiar. Com Gab Lara, Vannessa Gerbelli, Flavia Santana, Mouhamed Harfouch, Hugo Bonemer, Tati Christine e Gui Figueiredo. Teatro Multiplan (Av. das Américas, 3900 / Piso SS1 – Shopping Village Mall). Qui. a sex., às 20h, sáb., às 18h e dom. “as 16h. Ingressos: de R$ 60,00 a R$ 350,00.