O risco da dispersão
Tony Ramos e Denise Fraga em O que só sabemos juntos (Foto: Cacá Bernardes)
A natureza pessoal de um trabalho como O que só sabemos juntos fica evidente nos breves depoimentos de Denise Fraga e Tony Ramos sobre suas jornadas. Ela traz à tona a memória dos quintais do subúrbio durante a infância no bairro carioca de Lins de Vasconcelos e ele evoca o convívio com a mãe e a avó e o elo com o cinema, em especial no que se refere aos filmes protagonizados por Oscarito, lembrança complementada pela citação à emblemática contracena entre o comediante e Eva Todor em Os Dois Ladrões (1960), de Carlos Manga.
Mas a casa familiar não é necessariamente um lugar amoroso ou pacífico, a exemplo dos conflitos acirrados estabelecidos, em espaços domésticos, pelos personagens de Anton Tchekhov, dramaturgo mencionado por meio de uma de suas peças mais conhecidas, Tio Vanya. Essa, porém, não é a ligação firmada entre a dramaturgia do espetáculo e o texto do autor russo. A prioridade recai sobre o alerta ecológico feito por Tchekhov, que, transcendendo existências individuais, sinalizou apreensão com o futuro do mundo, com as gerações que estão por vir.
Nesse recorte da peça de Tchekhov realizado no espetáculo dirigido por Luiz Villaça, em cartaz no Teatro Casa Grande, o discurso planetário se sobrepõe às motivações íntimas de seus personagens. O trecho selecionado é inserido em cena de maneira descontextualizada. A montagem não valoriza o que preenche a interioridade dos personagens de Tchekhov – a paixão de Sonia pelo médico Astrov, razão que a leva a defender de modo ardente a consciência ambiental dele –, e sim a preocupação com as graves consequências das ações humanas para os rumos da Terra, perspectiva tematizada pelo dramaturgo, mas numa esfera mais concreta que visceral.
As rememorações dos artistas cedem espaço a questões do presente. São constatações, sem dúvida, fundamentais – como a denúncia da mulher acerca do autoritarismo do homem –, que, contudo, nem sempre rendem cenas bem construídas. Além disso, a dramaturgia de O que só sabemos juntos se abre para uma variedade de tópicos urgentes que geram uma quase inevitável dispersão. Esse problema decorre provavelmente do excesso de contribuições na concepção do texto – há, inclusive, na ficha técnica, uma divisão entre texto e dramaturgia, com o primeiro assinado por Denise Fraga, Luiz Villaça e Vinicius Calderoni e a segunda pelos mesmos e mais Kenia Dias, Tony Ramos e José Maria. Talvez o conceito de dramaturgia diga respeito aqui a colaborações que surgiram em sala de ensaio e foram acopladas a uma estrutura textual, mas o fato é que, no tratamento final, ficou faltando uma espinha dorsal mais claramente definida.
A determinação em abraçar temáticas diversas, em si uma medida inclusiva, faz com que a montagem se distancie de seu curso. Esse movimento expansivo também se reflete na constante interação com os espectadores – característica, aliás, frequente em espetáculos da temporada recente no Rio de Janeiro –, com os atores percorrendo a plateia e lançando perguntas. O que só sabemos juntos cresce mais nos momentos voltados para as impressões subjetivas dos artistas – as experiências relatadas por Denise Fraga e Tony Ramos, a fala sobre o indivíduo ser constituído não “apenas” pelo que vivenciou, mas por aquilo que não fez, pelas atitudes abortadas – do que nas abordagens de mazelas coletivas. É na concentração, no aparente recolhimento, que a montagem amplia o seu alcance.
A exposição de histórias específicas dimensiona as atuações de Denise Fraga e Tony Ramos. Ao longo da apresentação, ao se afastarem de suas narrativas particulares, Denise adere a uma movimentação física intensa e a um tom às vezes gritado – essa última, uma escolha que se justifica como extravasamento da mulher sufocada num universo dominado pela prepotência do homem, mas que não resulta artisticamente – e Tony, seguro na relação com a palavra, permanece em registro mais sóbrio e contundente. Irregularidades à parte, ambos comprovam habilidade em monopolizar as atenções de uma vasta plateia.
Os musicistas (Ana Rodrigues, Clara Bastos, Priscila Brigante, Grazi Pizani e Taís Cavalcanti), sob a condução de Fernanda Maia, ficam dispostos nas laterais do palco e demonstram competência. Mas não há no espetáculo uma real integração entre texto e música. A cenografia de Duda Arruk consiste numa espécie de folha de madeira, por cima da qual os atores transitam, com cadeiras diferentes umas das outras, como possíveis símbolos de individualidades, e uma abertura na vertical que sugere uma tela onde cada um pode projetar a própria imaginação. É uma criação um tanto abstrata, que proporciona interpretações distintas.
O que só sabemos juntos se perde, até certo ponto, diante do desejo de cobrir uma considerável quantidade de pautas emergenciais. Nos instantes em que Denise Fraga e Tony Ramos dão vazão a recordações e visões singulares, transferindo menos as cenas para a plateia, a montagem atinge a sua melhor expressão.
O QUE SÓ SABEMOS JUNTOS – Texto de Denise Fraga, Luiz Villaça e Vinícius Calderoni. Direção de Luiz Villaça. Com Denise Fraga e Tony Ramos. Teatro Casa Grande (Rua Afrânio de Melo Franco, 290). De qui. a sáb., às 20h e dom., às 18h. Ingressos: de R$ 21,00 a R$ 200,00.