O excesso da síntese
Gustavo Damasceno em Outra Revolução dos Bichos (Foto: Michel Langer)
Outra Revolução dos Bichos surge como um desdobramento e também como uma aparente oposição à encenação de Revolução dos Bichos. A base é semelhante – o livro de George Orwell –, assim como o diretor (Bruce Gomlevsky), a dramaturga (Daniela Pereira de Carvalho) e o ator (Gustavo Damasceno).
Considerando que Revolução dos Bichos foi encenado recentemente, essa nova montagem – em cartaz, até hoje, no Teatro III do Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) – representa uma continuidade de trabalho a partir do mesmo material. A abordagem artística, porém, é, pelo menos a princípio, contrária. O elenco numeroso deu lugar a um único ator. As ambiciosas criações nos campos da cenografia e do figurino, que faziam referência, ainda que sem buscar uma reconstituição realista, ao ambiente da fazenda e aos personagens-animais, foram substituídas pela neutralidade de um espaço destituído de adereços e de uma roupa-base que intencionalmente não fornece qualquer indicação – a concepção, bastante básica, não por acaso, ficou a cargo do próprio Gomlevsky, com exceção da iluminação, assinada, mais uma vez, por Elisa Tandeta.
Outra Revolução dos Bichos caminha na contramão aos assumidos excessos de Revolução dos Bichos, no que diz respeito à configuração da cena, ao tratamento estético e à duração (as cerca de três horas da primeira empreitada foram reduzidas a uma hora e dez minutos). Procura afirmar um teatro de síntese, de essência, desvinculado de sedução visual, centrado nos recursos de um ator que não conta com eventuais apoios externos para atrair o espectador. Não são poucas as montagens que evidenciam adesão a um despojamento (quase) absoluto, frequentemente como reação a um teatro atravessado pela espetaculosidade. Nesse sentido, Outra Revolução dos Bichos se inscreve numa determinada vertente do panorama teatral.
No entanto, parte do excesso de Revolução dos Bichos não só se mantém como se amplia aqui, principalmente em relação ao registro interpretativo. Gustavo Damasceno se multiplica agora entre diversos personagens, diferenciando cada um por meio de composições de corpo e voz, numa alternância incessante que inevitavelmente impressiona o espectador. Uma atuação dessa natureza está fundada numa certa exibição de versatilidade. Mas o fato é que Damasceno domina, de modo pleno, esse “jogo”, demonstrando controle de suas ferramentas expressivas, a julgar pelo colorido vocal que imprime e pela habilidade na realização da mímica. Essa estilização interpretativa é quebrada na última cena, na qual o ator se volta diretamente ao público (há, antes disso, breves – e dispensáveis – passagens marcadas pela inclusão da plateia), para, de alguma maneira, realçar a atualidade de uma dramaturgia que frisa a escalada crescente e desenfreada do autoritarismo. Especificando esse instante, a luz, que até então avolumava e preenchia a cena com rasgos, adquire cor.
Por mais que o contraste entre as duas versões da obra de Orwell dirigidas por Gomlevsky chame atenção, essa nova revolução dos bichos, se não é a mesma, não é exatamente outra, na medida em que se torna possível traçar paralelos cênicos entre ambas. Seja como for, o resultado gera impacto no público.
Outra Revolução dos Bichos – Dramaturgia de Daniela Pereira de Carvalho. Direção de Bruce Gomlevsky. Com Gustavo Damasceno. Teatro III do Centro Cultural Banco do Brasil (R. Primeiro de Março, 66). Hoje, às 19h. Ingressos: R$ 30,00 e R$ 15,00 (meia-entrada).