O desafio da escuta
Odilon Wagner e Marcelo Airoldi em A Última Sessão de Freud
A Última Sessão de Freud, montagem em cartaz no Teatro Adolpho Bloch, integra uma vertente de espetáculos pouco frequente na temporada teatral do Rio de Janeiro dessas primeiras décadas do século XXI. Pertence à tradição do teatrão, expressão (algo pejorativa) que diz respeito à valorização do que se convencionou chamar de teatro da palavra. Encenações que chegam ao palco munidas de padrão refinado, no que se refere às criações de cenografia, figurino e iluminação. Esse perfil de espetáculo, relevante em meio à oferta teatral, perdeu destaque no panorama devido a razões conhecidas: as dificuldades financeiras diante da necessidade de arcar com a folha de pagamento de um elenco numeroso ou de uma produção custosa que não seduz a plateia com os atrativos imediatos e contagiantes do gênero musical; a crescente priorização do teatro físico em detrimento do verbal; a redução da dramaturgia de gabinete em favor do texto concebido em sala de ensaio; e a verborragia de peças que colocam o público frente ao desafio da escuta, tarefa árdua numa época tão acelerada.
Mas as montagens filiadas a essa linha de teatro nem sempre se assemelham. A importância atribuída ao texto não está obrigatoriamente condicionada ao investimento em dramaturgia clássica ou densa. A Última Sessão de Freud, de Mark St. Germain, não alça o voo de grandes peças. Escorado no livro Deus em Questão, de Armand M. Nicholi Jr., o autor promove o embate entre o psicanalista Sigmund Freud e o escritor C.S. Lewis, portadores de percepções contrárias em relação ao mundo. Enquanto o primeiro evidencia uma visão mais pragmática e revela considerável ceticismo, o segundo assume mudança acerca de posicionamentos anteriores e se deixa nortear pela perspectiva religiosa. O problema central reside no fato de esse conflito ser reiterado ao longo da peça. Há, inclusive, um certo contraste entre a repetição didática dos argumentos e a bem-vinda aridez de um texto que substitui a ação pelo duelo verbal.
Na proposta teatral de A Última Sessão de Freud, o elemento mais promissor é o cenário de Fábio Namatame, que segue a indicação de reconstituição realista do consultório de Freud no exílio londrino, refúgio buscado por causa da ascensão hitlerista. A impressão inicial de suntuosidade diminui diante das paredes e do mobiliário gastos, marcados pelo tempo. Esse detalhismo também pode ser constatado nas subdivisões dentro de um único espaço (consultório, biblioteca), na quantidade de objetos e na preocupação com outro ambiente, na lateral direita do palco, na penumbra, sinalizando que a residência de Freud não se resume ao local onde ele e Lewis se encontram. O mesmo rigor define os austeros figurinos de Namatame. A iluminação de Gabriel Fontes Paiva e André Prado realça os momentos de intimismo que pontuam o confronto entre os personagens.
Elias Andreato conduz a cena sem interferir nos objetivos artísticos primordiais desse projeto: o protagonismo destinado ao texto e aos atores. A movimentação é fluente – nem estagnada devido à verborragia, nem artificialmente dinâmica para suprir a ausência de trama. Odilon Wagner e Marcelo Airoldi demonstram sintonia na contracena, mas trilham caminhos diversos sugeridos pelas próprias circunstâncias distintas de seus personagens. Odilon adere a trabalho de composição física – a fragilidade corporal construída através de postura levemente curvada, da voz abalada pelas crises de tosse decorrentes de um câncer em estágio avançado. Já Marcelo imprime registro naturalista, alternando o desconforto de quem é constantemente questionado sobre seus princípios com a satisfação externada nos instantes em que se vale do sarcasmo como forma de enfrentamento.
Inserida num nicho classificado como tradicionalista (ou até obsoleto), que remete a uma vasta produção teatral de décadas passadas, mas pouco presente na cena atual, a montagem de A Última Sessão de Freud preenche uma lacuna em meio ao painel artístico de hoje. Apesar do texto não atingir um grau de excelência, o espetáculo conta com concepção minuciosa, flagrante principalmente na cenografia, e atuações que dominam a palavra.
A ÚLTIMA SESSÃO DE FREUD – Texto de Mark St. Germain. Direção de Elias Andreato. Com Odilon Wagner e Marcelo Airoldi. Teatro Adolpho Bloch (R. do Russel, 804). Sex., às 20h, sáb., às 17h e 20h, dom., às 17h. Ingressos: R$ 120,00 e R$ 60,00 (meia-entrada).