No palco vazio, uma atriz afinada
Jandira Martini não escreveu Jandira – Em Busca do Bonde Perdido como um texto sobre a sua carreira. Distante de qualquer ambição biográfica, ela se apresenta, de maneira breve, logo no início, como atriz e autora e deixa claro o recorte escolhido: falar a respeito do seu convívio com o câncer. Diante da perspectiva da morte, Jandira traz à tona flashes da própria vida – não instantes consagrados, e sim aqueles que continuam, após longo tempo, reverberando intimamente, como a sensação gerada pelo cheiro do mar em passeios pela Santos onde nasceu.
Os comentários sobre sua saúde são quase sempre feitos em tom sarcástico, irreverente, o que não significa ausência de sofrimento. O texto foi desenvolvido como um fluxo de pensamento, produzido em situação de urgência, como ato de exteriorização. Em alguns momentos, Jandira abre espaço para citações diversas – a autores (Shakespeare, Tchekhov, Molière) e artistas da música (Raul Seixas, The Platters) –, mas jamais cede à dispersão. Não evita, porém, a impressão de uma dramaturgia que gira em círculos, um pouco estacionada.
O relativo imobilismo do texto contrasta, em certa medida, com a movimentação fluente de Isabel Teixeira em cena, mérito da direção de Marcos Caruso, parceiro constante de Jandira Martini na concepção de bem-sucedidas comédias de costumes (casos de Porca Miséria e Sua Excelência, o Candidato). Pelo palco vazio do Teatro das Artes, a atriz transita carregando apenas uma cadeira de praia, que, em determinada parte do espetáculo, se torna a cadeira na qual Jandira faz as sessões de quimioterapia. Esse único objeto não é deslocado de sua literalidade, de seu uso cotidiano – a abertura para sentidos variados realçaria a teatralidade. Mas representa tanto as lembranças nostálgicas da juventude quanto a realidade desestabilizadora do presente.
A escassez cenográfica é uma opção corajosa. Se o formato do monólogo evidentemente concentra as atenções no intérprete, a inexistência de elementos cênicos acentua essa exigência. As demais criações constitutivas do espetáculo seguiram a mesma linha, tendo a síntese como norte, e revelam sintonia com a dramaturgia: a trilha sonora de Aline Meyer parece “expressar” a mente atribulada de Jandira e a iluminação de Beto Bruel quebra de modo pontual com a neutralidade por meio de cor intensa.
Isabel Teixeira interpreta outra atriz, também brasileira e contemporânea. Não procura imitá-la através de recursos de caracterização ou de composição vocal. Mostra-se permanentemente enérgica, mas sem uniformizar sua atuação. Percorre uma gama de estados emocionais, dosando, de forma bastante equilibrada, humor corrosivo e vulnerabilidade.
Em Jandira – Em Busca do Bonde Perdido, Jandira Martini, que morreu esse ano, migrou da ficção para o registro de um contexto dramático da sua vida – ainda que necessariamente se trate de uma ficcionalização das próprias experiências. Uma jornada visceral transmitida na interpretação afinada e versátil de Isabel Teixeira.
JANDIRA – EM BUSCA DO BONDE PERDIDO – Texto de Jandira Martini. Direção de Marcos Caruso. Com Isabel Teixeira. Teatro das Artes (R. Marquês de São Vicente, 52/2º andar – Shopping da Gávea). Sex. e sáb., às 20h, dom., às 18h. Ingressos: R$ 100,00 e R$ 50,00 (meia-entrada).