Na tradição da cena contemporânea
Tuca Andrada em Let’s Play That ou Vamos Brincar Daquilo (Foto: Matheus José Maria)
A proposta de um trabalho como Let´s Play That ou Vamos Brincar Daquilo fica clara desde a entrada do público no espaço do Teatro III do Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB). Tuca Andrada imediatamente renuncia a formalidades relacionadas ao ato teatral, seja por meio da suspensão de convenções (como o registro da cena, aqui permitido), seja por meio da quebra da quarta parede. A fala em primeira pessoa também evidencia a filiação a uma dramaturgia concebida a partir do modo como a obra de um artista – o músico e poeta Torquato Neto – atravessa outro artista – o ator Tuca Andrada – e não de uma ambição em fornecer ao público uma “simples” biografia.
O objetivo, portanto, não é apresentar uma versão oficial sobre a jornada de Torquato através da reunião de acontecimentos históricos. Diferente disso, está em questão a percepção personalizada de Torquato por Tuca com destaque para a sua qualidade poética – não por acaso, o cenário é composto por papéis espalhados pelo chão, folhas que parecem artesanalmente produzidas e replicadas num mimeógrafo como jorros da subjetividade conturbada de um artista que, apesar da consciência em relação à sua desestabilização emocional e do esforço para se manter apegado à vida, se suicidou aos 28 anos.
Essas características, que tensionam fronteiras teatrais, se tornaram bastante frequentes na cena atual. O ator despido de personagem, a alternância entre narração e vivência/interpretação e a interação com o espectador são elementos encontrados na base de muitos espetáculos. Além disso, a derrocada dessas barreiras é, em boa parte, idealizada. Por mais que o artista se expresse em seu próprio nome, a existência de uma plateia inevitavelmente o afeta, determinando uma atuação. E iniciativas como conversar com o espectador e trazê-lo para o palco (procedimentos que, inclusive, esgarçam o espetáculo) não geram uma anulação da hierarquia. O artista permanece como aquele que conduz e domina a cena, ao passo que o público é guiado dentro de uma dada estrutura.
Ainda assim, Let´s Play That ou Vamos Brincar Daquilo possui particularidades na comparação com encenações anteriores com Tuca Andrada ligadas ao mundo do musical, no que se refere às montagens voltadas para o segmento biográfico (A Estrela Dalva, Crioula – A Dama do Suingue, Orlando Silva – O Cantor das Multidões), às esporádicas incursões em grandes produções (O Beijo da Mulher Aranha) ou ao mergulho no universo cult (The Rocky Horror Show).
Nesse novo trabalho, o ator se aproxima de Torquato com admiração, mas sem sacralização. Não procura incorporá-lo, encarná-lo. Em certos momentos, as vozes de Torquato e de Tuca se descolam, tanto pelo fato de a montagem contar com trechos de depoimentos do primeiro, dispostos em off, quanto pela organização dramatúrgica. Há passagens em que o ator, ao evocar o período de produção artística de Torquato, se coloca de maneira direta e chama atenção para as chagas da ditadura militar e as tentativas recentes de negá-la ou de saudá-la por camadas da população. Mas em outros instantes Tuca e Torquato surgem amalgamados, a ponto de o ator sentir necessidade de esclarecer, eventualmente, quem está falando. Nesse entrelaçamento de planos, Tuca atua com inabalável vigor.
Sem perder de vista as parcerias que estabeleceu nessa encenação – com Maria Paula Costa Rêgo, com quem divide direção, cenário e figurino, e com os músicos Caio Cezar Sitonio (diretor musical) e Pierre Leite –, Tuca Andrada tem presença centralizadora. Com o auxílio das tonalidades fortes da iluminação de Caetano Vilela, o ator cria atmosferas para, em seguida, desconstruí-las. Nessas ocasiões, rompe, de forma intencionalmente abrupta, com a ilusão da cena. Mas reacende a magia na revelação do parangolé (a cargo de Izabel Carvalho), que contrasta com a neutralidade do figurino.
Ao suspender os limites entre ator/personagem e palco/plateia, Let´s Play That ou Vamos Brincar Daquilo demonstra, mais do que subversão a convenções, adesão a tradições da cena contemporânea.
LET´S PLAY THAT OU VAMOS BRINCAR DAQUILO – Dramaturgia de Tuca Andrada a partir da obra de Torquato Neto. Direção de Tuca Andrada e Maria Paula Costa Rêgo. Com Tuca Andrada. Teatro III do Centro Cultural Banco do Brasil (R. Primeiro de Março, 66). De qui. a sáb., às 19h, e dom., às 18h. Ingressos: R$ 30,00 e R$ 15,00 (meia-entrada).