Musical panorâmico que não perde o foco
Sem perder de vista o elo com os dias de hoje, Leci Brandão – Na Palma da Mão – espetáculo dirigido por Luiz Antonio Pilar, em cartaz no Mezanino do Espaço Sesc – transporta o público para um outro tempo, particularmente no que se refere ao Rio de Janeiro, cidade onde a cantora e compositora homenageada nasceu e cresceu. Os personagens surgem inseridos em ambiente que sugere um terreiro – de modo a destacar a conexão de Leci com a religiosidade afro-brasileira – ou um quintal – símbolo de um subúrbio amoroso e aprazível duramente abalado pela escalada da violência nas últimas décadas -, de acordo com a concepção cenográfica de Lorena Lima.
Apesar da evocação do passado, a montagem estimula associações com a atualidade, especialmente no que diz respeito ao engajamento de Leci com questões que permanecem em discussão, como justas reivindicações. Um exemplo é a defasagem de oportunidades para homens e mulheres, evidenciada na cena em que ela enfrenta preconceito ao ingressar na ala de compositores da Mangueira, escola do seu coração (conforme realçado nos figurinos de Rute Alves).
Musical de porte reduzido, Leci Brandão – Na Palma da Mão procura abraçar a extensão da trajetória da artista. Busca filiação na vertente biográfica, mas concilia a abordagem panorâmica com um recorte definido, centrado na relação entre Leci e a mulher que garantiu sua sustentação afetiva e apoio profissional – a mãe, Lecy. Esse vínculo atravessa o texto fluente de Leonardo Bruno (com adaptação dramatúrgica de Lorena Lima, Luiz Antonio Pilar e Luiza Loroza), que transita pelos principais estágios da jornada de Leci: a religiosidade, o breve contato com o pai que morreu precocemente, os passos iniciais na atividade artística que a fizeram romper com um lugar feminino tradicional, a consolidação da carreira, o período de ostracismo decorrente do desentendimento com a gravadora poderosa, o comprometimento com as pautas sociais e ideológicas e a adesão à militância política.
Luiz Antonio Pilar se vale do formato de musical intimista como estímulo para instigantes propostas cênicas. O chão repleto de folhas secas rende, pelo menos, um momento de impacto: aquele em que Leci, sem perspectivas de trabalho, sucumbe e é soterrada pelas folhas. O diretor, inclusive, poderia ter aproveitado um pouco mais as possibilidades das folhas para a criação de imagens não literais, o que reforçaria a teatralidade do espetáculo. Em todo caso, a montagem surpreende com a interação entre os atores, valorizando uma certa individualização corporal sem abrir mão da necessária sintonia entre eles (direção de movimento a cargo de Luiza Loroza). Tay O’Hanna, Verônica Bonfim e Sergio Kauffmann formam o afinado elenco: a primeira imprime credibilidade a uma Leci sanguínea e destemida, a segunda interpreta a mãe a partir de uma fisicalidade expansiva, notadamente emocional, e o terceiro acumula personagens, revelando segurança em cada composição e nas marcações de conjunto. Também cabe elogiar a integração dos músicos – Thainara Castro, Matheus Camará, Pedro Ivo e Rodrigo Pirikito -, sob a direção musical de Arifan Júnior.
Leci Brandão – Na Palma da Mão é um musical que, independentemente do efeito de uma eventual quebra da quarta parede para produzir uma proximidade ainda maior com o público, contagia de maneira genuína e demonstra habilidade na articulação entre passado e presente, abrangência e foco, objetividade e uma dose de abstração.
Leci Brandão – Na Palma da Mão – Texto de Leonardo Bruno. Direção de Luiz Antonio Pilar. Com Tay O’Hanna, Verônica Bonfim e Sergio Kauffmann. Mezanino do Sesc Copacabana (R. Domingos Ferreira, 160). De qui. A dom., às 20h30. Ingressos: R$ 30,00, R$ 15,00 (meia-entrada), R$ 7,50 (associados do Sesc).