Instigante encenação para o espectador completar
Renato Livera em Deserto, encenação de Luiz Felipe Reis sobre o escritor Roberto Bolaño (Foto: Renato Mangolin)
Por meio da encenação de Deserto, o diretor Luiz Felipe Reis não procura biografar o escritor Roberto Bolaño, mas, a partir dele, destacar questões centrais referentes ao lugar do artista no mundo. Logo na primeira cena da montagem, em cartaz no teatro Futuros, o Bolaño interpretado pelo ator Renato Livera chama atenção para a importância do artista lidar com o risco, o abismo, o incômodo, de existir afastado das estruturas de poder, como um outsider.
Considerando a realização desse trabalho – e dos anteriores da Cia. Polifônica –, parece haver uma adesão à renúncia de um caminho de facilidades e concessões. Em determinado momento de Deserto, porém, o diretor sugere certa desconfiança em relação a uma postura radical: aquele em que o ator exalta valores na voz de um militante inflamado (ou de um pastor messiânico), num ato de catarse que se transforma em transe.
Luiz Felipe Reis, também responsável pela dramaturgia, coloca o personagem (real), o ator e o público em diferentes posições. Aborda um Bolaño que transita entre México, Chile e Espanha, envolvendo-se com o contexto de cada um desses países, sem, contudo, que esse itinerância gere uma crise identitária. Propõe, brevemente, que a plateia do teatro se torne a plateia de uma conferência ministrada por Bolaño. E concebe uma cena em que Renato Livera oscila entre a incorporação e o descolamento de Bolaño ao assumir, numa entrevista, a voz do personagem e a do interlocutor.
Nessa passagem, Livera/Bolaño ainda interage consigo mesmo num entrelaçamento de tempos diversos (o presente, da entrevista e da cena realizada diante do público, e o passado, da imagem pré-gravada). Luiz Felipe Reis distingue teatro e cinema como artes, respectivamente, do aqui/agora e do passado, mas presentifica o audiovisual no instante em que o ator fala para a câmera em tempo real.
A integração entre teatro e audiovisual, uma das características da Cia. Polifônica, se dá, em Deserto, de forma não reiterativa – sem, portanto, o mero intuito de confirmar um dado discurso. As imagens da natureza simbolizam, por um lado, o avanço do tempo e, por outro, o eterno, perspectiva contrária à da finitude de Bolaño, obrigado a administrar grave problema de saúde.
As menções a nomes de mulheres e à maneira como foram assassinadas em decorrência da extrema opressão surgem diante da imagem da entrada de uma caverna. A câmera não adentra esse espaço, permanecendo frente ao desconhecido, ao ameaçador. É uma imagem para o espectador completar. E as projeções servem para informar o público sobre algo que Bolaño não sabe – ou não se lembra -, a exemplo da citação ao filme Os Últimos Passos de um Homem (1996), de Tim Robbins.
A abertura para variadas associações e articulações se mantém nas criações estéticas do espetáculo, seja no cenário (de André Sanches e Débora Cancio) que dispõe elementos do cotidiano profissional de Bolaño em cima de uma plataforma-folha, seja a iluminação (de Alessandro Boshini) que acompanha, mas sem ilustrar, a alternância de estados emocionais do escritor.
Numa montagem que mescla tempos distintos, Renato Livera evidencia vínculo inquebrantável com o presente da cena, perceptível na instantaneidade da fala. O ator demonstra pleno domínio da palavra aliado ao extravasamento físico, bem ajustado às reduzidas dimensões do teatro Futuros (direção de movimento de Lavínia Bizzotto).
Deserto é uma encenação que conjuga teatro e cinema, passado e presente, realidade e ficção, estimulando o espectador a traçar instigantes possibilidades de interpretação a partir de um mergulho no universo de Roberto Bolaño, transportado para o palco sem didatismo, nem hermetismo.
DESERTO – Direção e dramaturgia de Luiz Felipe Reis. Com Renato Livera. Futuros – Arte e Tecnologia (R. Dois de dezembro, 63). De qui. a dom., às 20h. Ingressos: R$ 60,00 e R$ 30,00 (meia-entrada).