Imagens que escapam
Maurício Lima em Arqueologias do Futuro (Foto: Dayana Jacqueline)
“Você me vê?”, pergunta Maurício Lima ao público de Arqueologias do Futuro, disposto próximo à cena nas apresentações realizadas durante o Festival de Curitiba. De início, o espectador enxerga flashes do corpo nu do ator, que, no breu, manipula a luz em dinâmica acende/apaga. Ele fala sobre a interioridade, priorizando uma descrição prática (e enumeração dos órgãos localizados dentro do corpo humano) em detrimento de uma abordagem existencial/filosófica (a alma).
Apesar do ator não enveredar por uma perspectiva de interioridade física vinculada à fé numa essência espiritual, há, nessa introdução, certa abertura para a abstração. A imagem é pouco vista pelo espectador, guiado pela voz do ator numa proposta de relação sensorial. A partir de dado momento, tudo fica mais concreto. Termina o lusco/fusco da luz e ao público é permitido enxergar totalmente o ator, que contextualiza a indagação inicial do trabalho: Maurício Lima é um dos muitos corpos negros invisibilizados na sociedade – ou, ao contrário, destacados, mas como marginais, como alvos em violentas ações de exclusão. Corpos que dificilmente se tornam exceção em meio a uma estrutura de funcionamento aniquiladora.
A superfície onde imagens de comunidade urbana são exibidas traz recortes que sugerem os traços sinalizados na rua para demarcar o contorno de pessoas mortas – geralmente, assassinadas – estendidas na rua. Não se trata, portanto, de uma tela plana, cristalina. As imagens nela estampadas surgem “falhadas” e escapam, em alguma medida, ao olhar do espectador. Nesse sentido, Arqueologias do Futuro é um solo que intencionalmente continua não se revelando de modo integral diante do público.
Diferentemente do começo, Maurício Lima, que assina dramaturgia e direção com Fabiano de Freitas, não recorre tanto à palavra. Ela permanece presente, mas o que impera é o corpo que dança pela geografia da comunidade, transitando pelo espaço cênico por meio de movimentos sinuosos, próprios de quem domina os códigos necessários à sobrevivência num campo minado. A comunidade, por outro lado, é a região do corpo liberto, talvez utópico, que se expressa sem amarras e extravasa de maneira catártica.
Ao final, o ator retorna ao corpo invisível, mas de forma lúdica, através da figura do homem-bola que, com o rosto escondido por um conjunto de grandes bolas coloridas, caminha pelas ruas. É o que faz Maurício Lima nesse trabalho, que, nascido durante a pandemia e mostrado remotamente, rompe as delimitações do teatro (também enquanto manifestação artística com características específicas) e se expande para o mundo de fora.