Homenagem ao artista e reação ao país
Débora Duboc e Renato Borghi em O que nos mantém vivos?, em cartaz até domingo no Espaço Cultural Sergio Porto (Foto: Priscila Prade)
A montagem de O que nos mantém vivos? é norteada tanto pela necessidade de expressão diante de uma fase inflamada da realidade brasileira quanto pelo desejo de prestar homenagem ao ator Renato Borghi. Essa coletânea de textos de Bertolt Brecht, intercalada com depoimentos nos quais os artistas assumem postura cidadã, teve sua primeira encenação, com Borghi e Ester Góes em 1973, auge da ditadura militar, com o título de O que mantém o homem vivo?. O projeto foi retomado em outra ocasião marcante, a da transição do regime ditatorial para a abertura política, em 1982. Décadas depois, em 2019, motivado por instante dramático distinto, Borghi, ao lado de Elcio Nogueira Seixas, revisitou o antigo roteiro dramatúrgico e propôs uma nova versão – a que está em cartaz, até o próximo domingo, no Espaço Cultural Sergio Porto, sob a direção de Rogério Tarifa.
A razão que levou ao resgate de Brecht nesses períodos da história do país – diferentes, mas atravessados por formas diversas de opressão – parece evidente. Brecht foi um artista que rompeu com o ilusionismo teatral por meio de procedimentos de distanciamento cênico com o objetivo de conscientizar o espectador em relação à determinadas problemáticas, incentivando-o, a partir daí, a uma tomada de posição. Brecht não era exatamente contra a fruição ou o envolvimento emocional, mas contanto que o público não assistisse ao espetáculo de maneira alienada e passiva.
Nessa reconfiguração do projeto, os artistas não se afastaram da pergunta do título original, mas operaram sobre ela, tornando-a mais direta e pessoal. Não por acaso, em dado momento da montagem, a indagação é lançada aos espectadores, que, eventualmente, arriscam respostas. Para Renato Borghi, pode-se cogitar, a preservação da vida está ligada à sua extensa trajetória teatral, lembrada no palco, em especial, por meio da evocação do Teatro Oficina, companhia que fundou com José Celso Martinez Corrêa, Amir Haddad e Carlos Queiroz Telles dentro da faculdade de Direito no Largo de São Francisco, em São Paulo, em 1958. Borghi, através dessa encenação de Tarifa, traz à tona fatos emblemáticos na história da companhia, principalmente no que diz respeito à montagem de O Rei da Vela, de Oswald de Andrade, que estabeleceu uma mudança relevante dentro do Oficina – dos bem-acabados espetáculos concebidos a partir de dramaturgia norte-americana e russa, voltados para a difusão do realismo stanislavskiano, ao Te-Ato, termo que sintetiza uma anulação de fronteiras tradicionais do teatro, a começar pela extinção da separação entre vida e arte.
A inclusão de uma cena de A Vida de Galileu no roteiro de O que nos mantém vivos? é mais um vínculo com o Oficina, tendo em vista que a companhia montou a peça de Brecht no conturbado final dos anos 1960 (Galileu Galilei). A encenação atual também reúne pedaços de Santa Joana dos Matadouros e A Resistível Ascensão de Arturo Ui. Através dessas peças, questões fundamentais ganham destaque – entre elas, o medo da desestabilização decorrente da revelação de uma verdade ameaçadora e perversos modos de exploração da situação de abandono dos menos abastados. As possíveis associações com o aqui/agora não são estimuladas a partir de uma abordagem panfletária.
Entre os fragmentos da obra de Brecht, os artistas dão vazão a depoimentos acerca de experiências vivenciadas no limite e externando indignações referentes ao Brasil de hoje. Renato Borghi fala sobre sua cirurgia no coração, símbolo de seu elo com esse trabalho, em que entrelaça parcerias do passado (com Zé Celso) e do presente (com Elcio Nogueira Seixas, com quem fundou o grupo Teatro Promíscuo). Nem todos os que se encontram em cena possuem função dramática, o que tende a gerar certo grau de estranhamento, mas surgem conectados por laços de afeto e amparo. Borghi está no centro dessa rede de ternura, celebrado por seus 65 anos de carreira que não se resumem à definitiva jornada no Oficina. Pôsteres dispostos ao fundo do palco o identificam em outras ocupações artísticas, como a de autor – de A Estrela Dalva (resultado de sua adesão apaixonada à cantora em dramaturgia formulada com João Elísio Fonseca) e O Lobo de Ray-Ban.
Rogério Tarifa investe numa cena popular, característica sugerida não só na breve interação com a plateia, mas na cenografia – que assina com Luiz André Cherubini (responsável pelos bonecos, suspensos durante grande parte da apresentação) e Andreas Guimarães –, com uma lona e uma carroça, elemento que remete à mais uma peça de Brecht: Mãe Coragem e seus Filhos. Apesar de algum exagero na linha interpretativa adotada junto ao elenco, a montagem conta com passagens intensas, valorizadas, em boa medida, pela direção musical de William Guedes (com composição original de Jonathan Silva). Oscilando entre a incorporação dos personagens brechtianos e a desconstrução da representação nos trechos em que expressam suas vozes de artistas não ocultadas por trás de uma identidade ficcional, os atores – Borghi, Seixas, Débora Duboc, Cristiano Meirelles e Nath Calan – se mostram tão dedicados quanto irregulares, valendo elogiar a atuação contundente e sustentada por apreciável domínio técnico de Duboc.
O que nos mantém vivos? proporciona um justo tributo a capítulos importantes da história do teatro brasileiro e, em particular, a Renato Borghi, além de suscitar articulações entre o contexto do passado e o do presente. A coerência da proposta, mesmo com uma considerável perda de força no segundo ato, é preservada até o fim.
O que nos mantém vivos? – Idealização e adaptação de Renato Borghi e Elcio Nogueira Seixas. Direção de Rogério Tarifa. Com Renato Borghi, Débora Duboc, Elcio Nogueira Seixas, Cristiano Meirelles e Nath Calan. Espaço Cultural Sergio Porto (R. Humaitá, 163). Sex. e sáb., às 19h e dom., às 18h. Ingressos: R$ 80,00 e R$ 40,00 (meia-entrada).