Foco no jogo teatral
Danilo Maia e Gabriel Flores em Latitudes dos Cavalos (Foto: Clarissa Ribeiro)
Autor de Latitudes dos Cavalos, peça em cartaz até essa quarta-feira no Teatro Glaucio Gill, Gabriel Flores se mostra mais interessado na estruturação da cena do que propriamente no conteúdo do texto. Por meio de seus personagens, procura prestar uma homenagem ao teatro e, em particular, ao ator.
Há, desde o começo, uma valorização do desenho, da forma, de um externo que não se traduz como embalagem vazia, através de uma sucessão de movimentos físicos frenéticos, abruptos e breves, realizados em ritmo bastante acelerado. Apesar do elo entre o enredo, centrado na relação entre dois desconhecidos, e o dia a dia, essa proposta de linguagem afasta a montagem da representação do cotidiano.
Além disso, o modo como a situação-base é exposta não tende a gerar no público uma identificação imediata com uma realidade familiar. Existem elementos pouco críveis, uma falha talvez intencional de Gabriel Flores como autor com o intuito de produzir um nível de estranhamento no espectador, que fica impossibilitado de estabelecer uma apreciação tão-somente passiva com o que acontece no palco. É improvável que dois homens se conheçam num cinema pornô e iniciem uma conexão calcada na troca de informações acerca de suas experiências conjugais sem que o apelo sexual do ambiente norteie essa interação.
Seja como for, o objetivo principal do autor não é falar sobre as agruras emocionais de ambos – nas tentativas de retomar o vínculo amoroso ou de encerrá-lo –, mas destacar os papéis que exercem num jogo teatral, algo evidenciado quando um deles “encarna” a esposa do outro e, mais adiante, quando se firma uma dinâmica ator/diretor entre eles. A construção do ato teatral se impõe no texto – e no espetáculo – a partir do momento em que passam a ensaiar, evocando as mulheres mencionadas, e, especificamente, no instante em que um dos atores comenta sobre uma tonalidade da iluminação da cena.
O tributo ao teatro se manifesta ainda na concepção de uma cena quase que inteiramente destituída de recursos cenográficos (apenas quatro cadeiras remetendo ao espaço do cinema). Essa ausência de adereços sinaliza um desejo de apostar no texto e nos atores. Danilo Maia imprime notável colorido à interpretação, tanto no que se refere à variedade de intenções ao longo do texto quanto à integração entre o manejo da palavra e o desenho corporal (cabe elogiar a supervisão de movimento a cargo de Soraya Bastos) em atuação que não cai na armadilha do preciosismo estéril. Gabriel Flores trabalha em voltagem mais discreta, cumprindo, com disciplinado empenho, os desafios lançados em sua dramaturgia.
Em Latitudes dos Cavalos, Gabriel Flores demonstra um prazer pela arquitetura do texto e pelo jogo entre os personagens. Não escapa, contudo, do risco de esgotamento de sua proposta. Os personagens funcionam como representantes de funções artísticas no processo teatral, mas também poderiam existir de maneira mais plena como indivíduos autônomos, portadores de subjetividades. Esse preenchimento não inviabilizaria o apego à estrutura nos planos da dramaturgia e da encenação. A percepção panorâmica do espetáculo é dificultada pelo acúmulo de tarefas assumido por Gabriel Flores (autor, diretor e, agora, ator, substituindo Willean Reis). Restrições à parte, o resultado se mantém instigante, qualidade realçada numa insinuada articulação entre vida e teatro, instâncias fincadas no presente absoluto, sem chance de recuperação do passado.
Latitudes dos Cavalos – Texto e direção de Gabriel Flores. Com Danilo Maia e Gabriel Flores. Teatro Glaucio Gill (Praça Cardeal Arcoverde, s/n). Quarta, às 20h. Ingressos: R$ 40,00 e R$ 20,00 (meia-entrada).