Entre a evidenciação e a invisibilidade
Silvero Pereira em Pequeno Monstro, em cartaz no Teatro Poeira (Foto: Tainá Cavalcante)
Pequeno Monstro coloca a plateia diante do contraponto entre um discurso claro, objetivo, exposto de maneira direta, e uma concepção cênica enigmática, que estimula interpretações de quem assiste e valoriza a interface entre o teatro e outras manifestações artísticas (música, audiovisual e, em especial, artes plásticas).
O ator Silvero Pereira assina a dramaturgia centrada na questão da extrema violência traduzida em bullying e em frequentes assassinatos de crianças e jovens portadores de sexualidades que não se enquadram em normas pré-estabelecidas, massacres que, na maioria das vezes, repousam no anonimato. Silvero aborda essa tragédia perpetuada no decorrer do tempo, que diz respeito a muitos e, em particular, a ele – numa conjugação entre voz individual e voz coletiva que norteou outro solo que fez: BR Trans. Devido à preocupação em conscientizar sobre assunto tão relevante, o discurso é talvez excessivamente evidenciado.
Já na interação de Silvero com a proposta cenográfica (de Dina Salem Levy), Pequeno Monstro é uma montagem repleta de invisibilidades e desaparecimentos. Logo no início da apresentação dessa encenação dirigida por Andreia Pires, um tubo sinuoso de plástico toma conta do palco do Teatro Poeira e Silvero demora um pouco para aparecer – tubo, que, a partir de determinado instante, é simplesmente descartado pelo ator.
A cena também é composta por instrumentos de uma banda, dispostos no palco, mas sem que Silvero atue como músico – com exceção do final, ainda que o ato de extravasamento do ator seja bem mais importante do que um eventual virtuosismo musical. Antes disso, cada instrumento, distanciado de sua utilidade, é usado para simbolizar integrantes da família de Silvero.
Em dado momento, uma voz se impõe, mas sem a imagem do dono da voz, e Silvero transita por partes dos bastidores do teatro, espaços que o público não tem como acessar visualmente. Além disso, ao longo da apresentação desenhos estampam o corpo do ator. Como as imagens são projetadas, não aderem ao corpo. Somem de modo instantâneo, tanto as que se referem à sua ancestralidade quanto aquelas que caricaturam de forma preconceituosa e excludente um corpo que não segue padrões impostos.
A evocação de dolorosas lembranças possivelmente colabora para a segurança de Silvero em relação à palavra, mas a qualidade do seu trabalho, em corpo e voz, não se restringe ao atravessamento pessoal. O ator dá vazão à dramaturgia física de um corpo sufocado que transborda sem, com isso, perder o controle de sua presença em cena.
Pequeno Monstro gera alguma estranheza na oposição entre a concretude do texto expositivo – numa passagem, Silvero quebra a quarta parede e requisita a contribuição do público – e a criação estética – que resulta da articulação entre a cenografia e uma iluminação (de Sarah Salgado e Ricardo Vivian) que faz parte da espacialidade e inunda o palco com tonalidades fortes – mais aberta ao abstrato e repleta de ausências intencionais.
PEQUENO MONSTRO – Texto e atuação de Silvero Pereira. Direção de Andreia Pires. Teatro Poeira (R. São João Batista, 104). De qui. a sáb., às 20h, dom., às 19h. Ingressos: R$ 80,00 e R$ 40,00 (meia-entrada).