Descontrole sob total controle
A personagem de A Aforista, texto de Marcos Damaceno inspirado em obra do escritor austríaco Thomas Bernhard, surge, em cena, com um vestido cuja cauda se estende pelo palco até a parede, onde está presa. Essa proposta, concebida a partir de uma integração entre figurino (de Karen Brusttolin) e cenário (de Damaceno), determina uma circunstância física contrastante para a atriz Rosana Stavis, que fica com os movimentos trancados da cintura para baixo e livres da cintura para cima. Uma configuração que remete à imagem da Winnie, de Dias Felizes, que tem parte do corpo enterrada e a outra, liberta.
Mas enquanto na peça do irlandês Samuel Beckett a personagem vai sendo cada vez mais sugada pela terra numa impotência física divergente da sua perspectiva solar, na de Damaceno a condição corporal se mantém inalterada e a personagem, diferentemente da luminosidade de Winnie, destila, com humor ácido, farpas referentes a artistas egocêntricos.
Esse foco temático é, sem dúvida, um elo com o outro trabalho realizado por Stavis/Damaceno a partir de uma articulação com Bernhard: Árvores Abatidas ou para Luis Melo. Não por acaso, os espetáculos são componentes de uma trilogia. A personagem-narradora de A Aforista relata ao público sobre dois homens, pianistas como ela. Um deles cometeu suicídio por inveja do sucesso do colega ou, mais exatamente, diante da constatação do descompasso entre a aclamação que projetou para si e a real extensão de seu talento.
Em Árvores Abatidas, Stavis interpretava uma mulher que não estava no centro da ação, tanto por não ser a protagonista da história que contava quanto por sua localização geográfica (permanecia no hall de uma casa, sem jamais entrar na festa ambientada no cômodo ao lado, conforme os sons ouvidos pelo público). Em A Aforista, a personagem tem papel igualmente coadjuvante no conflito que expõe.
Apesar de ter sido próxima dos pianistas e testemunhado o desenrolar dos acontecimentos, ela frisa um certo afastamento ao afirmar que aquele embate não lhe diz respeito, na medida em que sua motivação artística não é a competitividade e sim a urgência em marcar oposição à própria família. A dramaturgia joga luz sobre essa figura periférica, destacada na iluminação de Beto Bruel.
O descolamento da personagem em relação aos fatos que esmiuça diante da plateia se manifesta ainda em sua posição de narradora. O ato de narrar pressupõe um distanciamento, mas também uma atualização da vivência por meio da presentificação do passado. Em A Aforista, o espectador se depara com uma descrição destituída de visceralidade e dotada de discreta dose de compaixão feita por uma mulher acerca de situações das quais participou em parte.
Uma mulher entre dois pianistas – justamente a disposição cênica do espetáculo de Damaceno, em cartaz no Teatro I do Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), que traz Stavis atuando entre os pianistas Sergio Justen e Rodrigo Henrique, que se encontram nas laterais do espaço num espelhamento relativizado por distinções nos figurinos.
Rosana Stavis interpreta essa mulher que debocha de um mundo artístico atravessado pela vaidade – um mundo com o qual está, em algum grau, comprometida. A atriz demonstra pleno controle do descontrole corporal dessa personagem, a julgar pelo domínio do desafiante contraponto entre imobilidade e movimentação frenética. A segurança com a palavra não é menor. Stavis imprime modulações diversas ao texto que, ao invés de resultarem num preciosismo, num maneirismo estéril, potencializam um estado de desestabilização física e mental. Evidencia louvável fluência em rápidas transições emocionais, mais uma prova da precisão com que maneja suas ferramentas de atuação.
Uma eventual sensação de repetição suscitada pela evocação do espetáculo anterior – afinal, são os mesmos diretor/dramaturgo e atriz envolvidos com a apropriação do universo do mesmo autor – não atrapalha a apreciação de A Aforista, uma encenação que sinaliza uma coerente continuidade de trabalho na parceria entre Marcos Damaceno e uma irrepreensível Rosana Stavis.
A Aforista – Texto e direção de Marcos Damaceno a partir da obra de Thomas Bernhard. Com Rosana Stavis. Teatro I do Centro Cultural Banco do Brasil (R. Primeiro de Março, 66). De qua. a sáb., às 19h30, e dom. às 18h. Ingressos: R$ 30,00 e R$ 15,00 (meia-entrada).