Conjugação entre (supostas?) oposições
Janaína Leite e Amália Fontes Leite em Stabat Mater (Foto: Susan Sena)
Uma das tendências mais evidentes da cena contemporânea é a utilização de experiências particulares – com frequência, de natureza trágica – como matéria-prima para projetos artísticos. Com cada vez mais assiduidade, atores e atrizes vêm externando suas vivências íntimas diante de espectadores desconhecidos. Apesar de elaborados cenicamente, os conteúdos pessoais são expostos de maneira clara e não fica dúvida de que pertencem àquele que está trazendo-os à tona.
Num extremo dessa vertente, a Cia. Hiato apresentou um conjunto de cenas intimistas, reunidas sob o nome de Ficção, nas quais o público ocasionalmente se deparava, no palco, com o parente a quem o intérprete se referia em seu depoimento. É também o que se dá em Stabat Mater, trabalho que integra a programação da Mostra Lucia Camargo no Festival de Curitiba, marcado pela interação entre a atriz Janaína Leite e a própria mãe, Amália Fontes Leite.
De acordo com Janaína, um dos principais nortes desse trabalho foi suprir uma lacuna – a conexão com sua mãe – constatada após a realização de uma encenação centrada em seu pai (Conversas com meu Pai). À questionada ausência da mãe no espetáculo anterior, Janaína responde por meio dessa montagem, cujo título, Stabat Mater, significa “a mãe estava lá”.
Responsável pela dramaturgia, a atriz/performer entrelaça seu percurso emocional com a história da Virgem Maria. O cruzamento entre o sagrado e o profano é realçado a partir do instante em que Janaína revela um acontecimento traumático, ocorrido há mais de 20 anos: um estupro que sofreu no caminho para a escola num dia em que, excepcionalmente, não estava acompanhada da mãe.
Ao conceber esse trabalho ao lado de Amália, Janaína fez uma proposta inusitada e, no mínimo, bastante desconfortável: convidou a mãe a dirigi-la numa cena de sexo explícita com um ator pornô. Será que Stabat Mater é uma vingança da filha em relação à mãe, que não pode protegê-la de uma enorme violência? O contato sexual, ensaiado sob a condução de Amália, é projetado, na tela, ao final do espetáculo.
No palco, Janaína desconstrói a representação e, ao mesmo tempo, adere ao mascaramento (literal, em alguns momentos). Coloca-se, frente à plateia, “sem personagem”, no formato de palestra informal, explanando sobre a gênese do trabalho, contextualizando-o dentro de sua investigação artística. Essa atuação transparente se manifesta no tom coloquial e na voz destituída do artificialismo da empostação. Mas cabe assinalar que, na noite de estreia da encenação no Festival de Curitiba, parte considerável do texto dito pela atriz não era escutado pelo público. Tal fato aparentemente não se devia a uma escolha artística, decorrente de um eventual confronto do espectador com a inevitabilidade da perda, com a falta de acesso total ao que é falado e mostrado, e sim a uma limitação técnica.
Em contrapartida a esse registro “invisível”, Janaína se posiciona como representação de filha, assim como Amália simboliza a mãe e Lucas Asseituno, o profissional do sexo (os três vestem camisas que estampam essas funções). Encontram-se, nesse sentido, interpretando papéis – talvez porque isto invariavelmente aconteça quando se está no palco diante de uma plateia –, por mais que Amália e Janaína sejam mãe e filha na esfera da realidade. No que diz respeito ao terceiro elemento, a instância ficcional é mais explícita. Os atores pornôs surgem na tela por meio da exibição de trechos das entrevistas fornecidas à Janaína. Eles têm identidade, ao passo que o personagem feito por Lucas no teatro não possui voz, nem rosto.
Atriz que fez parte do Grupo XIX e hoje desenvolve pesquisa no campo do teatro documental, Janaína Leite demonstra plena adesão à linha autobiográfica flagrante no panorama da cena atual, destacando, em Stabat Mater, uma conjugação entre planos (supostamente?) opostos, como realidade/representação e maternidade/pornografia.