Beckett com as marcas do Teatro Oficina
Marcelo Drummond e Alexandre Borges em Esperando Godot (Foto: Jennifer Glass)
Último espetáculo de José Celso Martinez Corrêa, que morreu em 2023, Esperando Godot foi gestado no período da pandemia e apresentado de modo virtual com direção dividida com Monique Gardenberg. Depois a montagem estreou, com elenco distinto (com exceção de Marcelo Drummond), presencialmente no Teatro Oficina Uzyna Uzona, em São Paulo. Na semana passada, desembarcou no Teatro Carlos Gomes, no Rio de Janeiro. Mas o vínculo de Zé Celso com essa peça de Samuel Beckett é mais antigo, valendo lembrar que dirigiu um espetáculo anterior a partir do texto no início dos anos 2000. Antes ainda (na década de 1990) evocou Esperando Godot em Cacilda!, a primeira das encenações que assinou em homenagem à Cacilda Becker. A atriz protagonizou (juntamente com Walmor Chagas) a versão de Flavio Rangel para a peça de Beckett, em 1969 – interpretação que marcou o término precoce de sua brilhante carreira.
O novo Esperando Godot segue determinadas diretrizes do Oficina, a exemplo da abordagem dessacralizada dos textos, não no sentido de destituí-los de suas totalidades, de fragmentá-los, e sim no de promover atualizações. A encenação começa com vídeo contundente com flagrantes de tragédias recentes – guerras e desastres ecológicos. Mas não há uma conjugação entre o contexto em que a peça foi escrita (o pós-Segunda Guerra Mundial) e os terríveis acontecimentos do século XXI. Durante a apresentação, Lucky surge com mochila de trabalhador de aplicativo – numa correspondência evidente entre o explorado de ontem e o de hoje. A roupagem contemporânea também desponta por meio de tiradas de humor – nas brincadeiras maliciosas e nas citações a ferramentas tecnológicas de comunicação – que soam algo infantilizadas. Essas inclusões, dramáticas ou cômicas, funcionam mais como apelos para estabelecer elo direto com o espectador do que como proposições decorrentes de um estudo verticalizado da dramaturgia do autor irlandês.
São propostas que não dizem exclusivamente respeito a essa montagem de Esperando Godot. Podem ser encontradas em espetáculos diversos do Teatro Oficina. Entre as características frequentes há referências a figuras políticas do instante imediato, em especial aos representantes da direita extremista, e a conexão com o multimídia. Essa linguagem se manifesta aqui por meio da mencionada exibição que abre o espetáculo e da inserção de um profissional (Igor Marotti) incumbido de filmar a encenação e as eventuais passagens em que os atores percorrem a plateia. Se por um lado as imagens, projetadas em telão localizado no palco, favorecem a apreciação do público num espaço razoavelmente extenso como o do Teatro Carlos Gomes, proporcionando ver as expressões dos atores em close, por outro desvalorizam o ato teatral ao direcionarem o olhar do espectador mais para o registro da cena do que para a cena em si. Não ocorre um intercâmbio de fato entre o teatro e o aparato multimídia, mas tão-somente uma captação ao vivo que se limita a furar a estrutura do cinema como arte atada ao passado, à projeção de imagens pré-gravadas.
Em termos de espacialidade, muito se perde na substituição do palco-passarela – que, concebido ao longo dos anos 1980 por Lina Bo Bardi e Edson Elito, propicia uma integração entre o espaço interno e o externo do teatro e, consequentemente, com a natureza – pela frontalidade tradicional. Apesar disso, a cenografia de Marília Gallmeister e Marcelo X ocupa, de maneira expressiva, o palco com o elemento primordial da peça de Beckett: a árvore seca, que, na transição do primeiro para o segundo ato, ganha folhas que sugerem a evolução do tempo num texto de construção circular, atravessado, como o próprio título indica, pela exasperação da espera. Os figurinos (seriam dos mesmos profissionais, que definem suas funções como direção de arte e arquitetura cênica?) são mais chamativos para os personagens munidos de perfis específicos (Pozzo, Lucky e o Mensageiro), mas distinguem, de forma inspirada, os dois vagabundos, Vladimir e Estragon, por meio de trajes retalhados em medidas diferentes.
Seja como for, a montagem adquire maior impacto no trabalho do elenco, que demonstra segurança e domínio do texto. Alexandre Borges, como Vladimir, se aproxima do corpo clownesco, sem, contudo, enveredar por excessos histriônicos. Marcelo Drummond faz um Estragon (Estragão) menos maltrapilho, numa linha de atuação não tão estilizada. Ricardo Bittencourt dá vazão ao autoritarismo de Pozzo (o Domador), mas sem uniformizar o personagem. Roderick Himeros dimensiona a submissão, bem como o descontrole, de Lucky (Felizardo, a Fera), prejudicado apenas por dispensável momento de migração para as cadeiras da plateia. Tony Reis pontua o espetáculo como o Mensageiro (ao invés do Menino da peça) num acentuado e debochado tom de crítica, perceptível no contraste entre o sotaque norte-americano e ancestralidade afro-brasileira.
Esperando Godot sinaliza certo desgaste na reedição de proposições bastante reconhecíveis em encenações do Teatro Oficina. Entretanto, sua rápida permanência no Rio de Janeiro fornece aos espectadores da cidade a oportunidade de manter contato com essa companhia de importância histórica incontestável. Com a morte de Zé Celso, artista centralizador na trajetória do grupo (o que não anula as contribuições dos demais integrantes), talvez essa montagem simbolize o encerramento de um percurso intenso rumo a um processo de mudança ou a continuidade de um direcionamento artístico solidamente firmado. O futuro dirá.
ESPERANDO GODOT – Texto de Samuel Beckett. Direção de José Celso Martinez Corrêa. Com Marcelo Drummond, Alexandre Borges, Ricardo Bittencourt, Roderick Himeros e Tony Reis. Teatro Carlos Gomes (Praça Tiradentes, s/nº). Qui. e sex., às 19h, sáb. e dom., às 17h. Ingressos: R$ 80,00 e R$ 40,00 (meia-entrada). Até domingo.