Artifícios criativos
Camila Morgado e Thelmo Fernandes em A Falecida, espetáculo em cartaz no Teatro Copacabana (Foto: Victor Hugo Cecatto)
Na medida do possível, Sérgio Módena vem suprindo uma lacuna no panorama teatral ao se dedicar a montagens de textos clássicos. Depois de Longa Jornada Noite Adentro, de Eugene O’Neill, assina a direção de A Falecida, de Nelson Rodrigues, em cartaz no Teatro Copacabana. Módena caminha na contramão das tendências da cena atual, primordialmente voltada para a valorização de dramaturgias centradas na afirmação de oprimidas vozes identitárias.
Trazer à tona essas vozes até então silenciadas é, sem dúvida, fundamental, ainda mais porque a expressão individual se revela, muitas vezes, representativa de um coletivo massacrado por múltiplas formas de violência. Mas, sem perder de vista o importante comprometimento com uma dramaturgia do aqui/agora, o interesse por montagens de peças já escritas decaiu, nos últimos tempos, de maneira avassaladora. O desapego da vasta literatura dramática – concebida no decorrer dos séculos, tanto brasileira quanto estrangeira – implica em diminuição de diversidade e de oportunidade de fazer o público perceber que vários textos continuam lançando questões que permanecem pertinentes.
A decrescente regularidade de encenações de textos de Nelson Rodrigues evidencia esse quadro. Se nos anos 1990 houve críticas à constância com que suas peças eram levadas ao palco, hoje raras são as iniciativas focadas nesse autor. Entre as razões que influenciam na relativa indiferença por uma dramaturgia pronta, fechada (mas não obrigatoriamente congelada), cabe mencionar dificuldades de produção, considerando os custos para se reunir o número de atores determinado em tantas peças e o temor de que os textos não atraiam uma quantidade de espectadores que minimamente compense o investimento econômico. Além disso, boa parte dos artistas externa uma urgência de falar em primeira pessoa – sem o intermédio de uma dramaturgia escrita por um outro –, de priorizar personagens de si em detrimento de interpretações de figuras ficcionais.
A encenação de um texto como A Falecida é, portanto, um feito que merece comemoração. Essa primeira tragédia carioca de Nelson Rodrigues, um dos melhores exemplares de sua obra, traz desafios, a começar pelo fato de os principais personagens da peça, Zulmira e Tuninho, apesar de casados e pertencentes a um mesmo universo suburbano, existirem em frequências distintas. Não por acaso, a peça os apresenta em ambientes e perspectivas diversos: ela, no encontro com a cartomante, dando início a um anseio mórbido pela própria morte, a ser celebrada num enterro de luxo, símbolo da vingança que articula; ele, com os amigos de sinuca, ansioso pelo jogo de futebol que se aproxima. Zulmira vive cada vez mais desconectada da realidade, enclausurada num mundo impenetrável, com fixação na morte em meio a projeções do impacto causado por seu enterro fantasioso; Tuninho, ao contrário, está atado ao cotidiano, sem qualquer busca por transcendência. Ao longo da peça, eles interagem, mas não se comunicam.
Ao se debruçar sobre esse texto, Sérgio Módena procura transportar para o palco a realidade delirante de Zulmira. A luz localizada na lateral do espaço, que remete a um set de cinema ou publicidade, realça a natureza estilizada de uma montagem que adere ao artifício sem incorrer no meramente postiço. Há uma leve acentuação do humor, com alguma concessão à caricatura, mas sem desvirtuar substancialmente o texto. O diretor se afasta de uma abordagem realista tradicional e sustenta essa característica como linha de encenação. Nesse sentido, existe uma coerência geral norteando o espetáculo.
Falta, porém, a Sérgio Módena uma leitura mais específica da peça, o que não deve ser entendido como necessidade de desconstrução da dramaturgia. Ao invés de reger a montagem a partir de um olhar particular em relação ao texto, Módena parece querer provocar certa estranheza no público através da movimentação dos atores – que, em dados instantes, soa arbitrária – e da inclusão de máscaras, que, juntamente com o coro formado pelos personagens coadjuvantes, sugere um elo com a tragédia, mas que não ganha corpo no palco.
Outras propostas carecem de solidez. O clímax da cena final, com Tuninho num misto de alegria, pela concretização da sua vingança, e tristeza, pela descoberta recente sobre Zulmira, é esvaziado. A criatividade da cenografia de André Cortez, que indica um mausoléu com ladrilhos escuros, fica mais no plano da tentativa que de uma realização esteticamente satisfatória. Há, contudo, criações inspiradas. Os figurinos de Marcelo Olinto trazem sinais do meio sócio-econômico dos personagens, mas sem enveredarem pelo realismo fotográfico, e chamam atenção para o contraste entre tons neutros e a explosão do vermelho. A iluminação de Renato Machado recorta os personagens em momentos relevantes. A trilha sonora de Marcello H. tensiona o real e o imaginário, o subjetivo e o palpável.
É na condução do elenco que Sérgio Módena atinge os melhores resultados. Camila Morgado interpreta Zulmira com intensidade emocional que não uniformiza a personagem. Vale destacar uma passagem: aquela em que Zulmira vê o caixão pela primeira vez e vai até ele em estado de êxtase. A quebra da naturalidade é plenamente preenchida de significado. Thelmo Fernandes projeta com exatidão o acento rodrigueano tanto nas entonações quanto nas intenções. Stela Freitas acumula os papéis da cartomante e da mãe de Zulmira – na primeira procura extrair graça da discrepância entre fingimento e realidade e na segunda alcança contundência em sua última cena. Alcemar Vieira compõe o amante Pimentel na tradição do malandro popular. Gustavo Wabner, Alan Ribeiro e, em especial, Thiago Marinho demonstram empenho e injetam energia na cena.
Nessa montagem de A Falecida, a busca por inventividade nem sempre é amparada por uma base consistente. Ainda assim, a qualidade da peça se impõe, mérito que deve ser creditado, em grau considerável, ao elenco.
A Falecida – Texto de Nelson Rodrigues. Direção de Sérgio Módena. Com Camila Morgado, Thelmo Fernandes, Stela Freitas, Alcemar Vieira, Gustavo Wabner, Thiago Marinho e Alan Rocha. Teatro Copacabana (Av. Nossa Senhora de Copacabana, 261). Sex. e sáb. às 21h e dom. às 20h. Ingressos: de R$ 20,00 a R$ 160,00.