Ao sabor do tempo
Há uma sobreposição de tempos e espaços em A Lista, montagem do texto de Gustavo Pinheiro em cartaz no Teatro dos Quatro. As personagens, duas vizinhas de gerações diferentes, lidam de maneiras distintas com o presente. A professora aposentada Laurita evoca o passado com saudade e expressa decepção com o aqui/agora. Lamenta a degradação de Copacabana e traz à tona uma época luminosa, quando o bairro contava com numerosos cinemas de rua e boates agitadas, como a Regine´s. Já Amanda, além de não ter vivido durante a fase mais efervescente de Copacabana, evidencia uma personalidade menos fatalista e preserva olhar de encanto diante do mundo, percepção que, aos poucos, contamina Laurita.
Na primeira parte da peça, as personagens interagem no apartamento de Laurita. Apesar do ambiente fechado, há referências ao espaço externo. Recolhida dentro de casa devido à pandemia do coronavírus, Laurita recebe as compras de supermercado graças à gentileza da vizinha, Amanda, que é a personagem que circula pelas ruas e se mostra em movimento constante. O claustrofóbico apartamento de Laurita é arejado pelo piso que reproduz o desenho sinuoso das pedras da orla, como se o dentro e o fora convivessem, de modo sugestivo (e conflituoso, a julgar pelos embates entre as personagens), no mesmo espaço, de acordo com a proposta cenográfica de J.C. Serroni. Na segunda parte, marcada por uma transição emocional na jornada de Laurita, ambas aparecem à beira mar e animadas com as perspectivas de mudança.
A Lista reúne algumas instâncias temporais. O passado de décadas, simbolizado por uma Copacabana exuberante, mas sem esquecer de eventuais tragédias que abalaram o país (o confisco das poupanças pela então ministra Zélia Cardoso de Mello durante a presidência de Fernando Collor de Mello, ainda que esse fato surja ligado a uma história inventada por Laurita). Há o passado recente, localizado no auge da pandemia – momento em que essa peça de Gustavo Pinheiro foi gestada e começou a ser apresentada em meio virtual -, bem refletido no confinamento de Laurita na primeira metade do texto. E finalmente o presente (ou uma projeção de futuro), com as personagens na praia.
Copacabana, descortinada diante do público e elevada ao status de personagem nessa peça, é o conhecido bairro carioca, com as suas características específicas, e, ao mesmo tempo, símbolo de transformações culturais e comportamentais contundentes que não se restringem às delimitações geográficas da região. Seja como for, a abordagem de Copacabana remete longinquamente a A Partilha, peça de Miguel Falabella, em especial nos minutos iniciais, quando Laurita comenta sobre o seu apartamento, que quase não é banhado pelo sol. No texto de Falabella, as personagens mencionam o reduzido acesso à natureza – devido a visão limitada do mar pela janela do imóvel.
Desenvolvida ao longo da pandemia, A Lista ganhou com o desdobramento das situações, ausentes da versão virtual. Mas determinadas fragilidades no âmbito da dramaturgia permanecem. Amanda desponta como uma personagem não muito crível em sua postura sempre solidária e positiva da vida, tendo em vista a quantidade de percalços, de adversidades, enumerados em seu percurso. O autor também se vale de certas repetições – a exemplo da frequência com que Laurita reitera que os bairros do Rio de Janeiro, com exceção de Copacabana, alagam. Esse recurso, inserido para provocar resposta imediata na plateia, enfraquece o resultado.
Guilherme Piva procura imprimir uma interação fluente entre as personagens, valorizando o texto e o trabalho das atrizes. O diretor investe em climas emocionais diversos, demarcados na iluminação de Wagner Antônio. Em alguns instantes, esses climas variados (realçados por uma trilha sonora eclética) são bruscamente interrompidos antes de serem instalados de modo mais sólido na cena. O provável intuito é surpreender o público. Mas há uma perda importante: o delicado equilíbrio da atmosfera doce-amarga, entre a esperança e a melancolia, não se instaura no palco. Em todo caso, Lilia Cabral domina essa dinâmica ao transitar, com agilidade, entre os lances de humor e sofrimento de uma personagem ressentida. Giulia Bertolli, mesmo enfrentando o desafio de interpretar uma personagem cujo estado de espírito não soa completamente verossímil, estabelece uma contracena segura.
A Lista demonstra filiação à tradição do teatro de mercado, com potencial para atrair uma ampla faixa de espectadores. Considerando o crescente afastamento do público das salas nas últimas décadas, esse espetáculo – dotado de méritos artísticos, em que pesem as restrições – cumpre uma função relevante.
A Lista – Texto de Gustavo Pinheiro. Direção de Guilherme Piva. Com Lilia Cabral e Giulia Bertolli. Teatro dos Quatro (R. Marquês de São Vicente, 52/Shopping da Gávea). Sex. e sáb. às 20h e dom. às 19h. Ingressos: R$ 120,00, R$ 60,00 (meia-entrada).