A tragédia do cotidiano
Érika Rocha em aleatório, montagem de Nilcéia Vicente para o texto de debbie tucker green (Foto: Allis Bezerra)
SÃO PAULO – A decisão de escrever em letras minúsculas o título da peça (aleatório) e o nome de sua autora (a britânica debbie tucker green) talvez decorra de uma preocupação em ressaltar o que não ganha destaque, a tragédia do cotidiano que, diante da insensibilidade crescente, é cada vez mais banalizada, tratada como fato corriqueiro: o assassinato frequente – e aleatório – de jovens negros.
Inspirada num contexto específico (o aumento de crimes com facadas na Grã-Bretanha no final da primeira década do século XXI), a temática, porém, possui inegável proximidade com a realidade brasileira. A encenação de Nilcéia Vicente não investe em aclimatação nacional, mas não há como o espectador deixar de estabelecer articulações imediatas. Essa conexão se mantém ao longo da apresentação, apesar da inadequada escolha do Auditório do Sesc Vila Mariana, que distancia o público da cena devido à impessoalidade do próprio espaço.
A disposição do Auditório desfavorece o interessante cenário de Guilherme Santti, com elementos (sofá, cortina) em variações de tom de carne. Considerando a concepção cenográfica e o caráter intimista desse solo, interpretado pela atriz Érika Rocha, teria sido melhor se a plateia envolvesse o palco, ao invés de permanecer frente a ele, em tradicional frontalidade.
Seja como for, um componente importante do cenário é a televisão, que transmite imagens tanto simbólicas – a destruição da casa em miniatura, representativa da derrocada da família diante do assassinato do filho – quanto de correspondência direta com o foco da peça – protestos contra o ininterrupto homicídio da população negra. São sequências perceptíveis, ainda que intencionalmente falhas, acidentadas, repletas de interferências.
As proposições cênicas se somam aos desafios lançados pela peça de debbie tucker green, que descortina um panorama familiar num dia como muitos até o momento de abrupta suspensão, determinado por ligação telefônica que informa sobre o assassinato do filho. Esse painel é revelado através do depoimento/narração de uma personagem – a irmã do rapaz assassinado –, que, de certo modo, corporifica os demais integrantes desse núcleo. Há, nesse sentido, uma centralização (a irmã) e, ao mesmo tempo, uma alternância de identidades (o restante dos personagens).
Esse concentrado de personagens naturalmente encaminharia o registro interpretativo da atriz para a composição diversificada, para uma histriônica exposição de versatilidade. Érika Rocha escapa dessa armadilha exibicionista. Incorre, contudo, em problema oposto: a narração linear. A atriz também demonstra alguma hesitação, insegurança diante do texto. A tentativa de colorir a narração se dá por meio de procedimento exterior – o uso de sonoridades distintas (música de Dani Nega e André Papi) para as personagens –, mas o resultado soa repetitivo.
Sem perder de vista as mencionadas restrições, aleatório é uma peça que se impõe pela valorização de uma temática urgente e pelo rigor estrutural – qualidades evidenciadas na montagem de Nilcéia Vicente.
aleatório – Texto de debbie tucker green. Direção de Nilcéia Vicente. Com Érika Rocha. Sesc Vila Mariana / Auditório (R. Pelotas, 141). De qui. a sáb., às 20h30. Ingressos: R$ 50,00. Até 23/11.