A palavra poética na voz de Fernanda Montenegro

Fernanda Montenegro na leitura realizada na última terça-feira na Academia Brasileira de Letras (ABL) (Foto: Michael Félix/ Divulgação ABL)
Nos últimos anos, Fernanda Montenegro vem se dedicando ao formato de leitura por meio de textos de Simone de Beauvoir – em A Cerimônia do Adeus, projeto que surgiu como encenação com o título de Viver sem Tempos Mortos – e Nelson Rodrigues – a partir de costura dramatúrgica adaptada do livro organizado por Sonia Rodrigues, Nelson Rodrigues por ele Mesmo. Na terça-feira dessa semana, a atriz realizou, na Academia Brasileira de Letras (ABL), o recital Uma Academia Toda Prosa, composto por 14 textos de escritores pertencentes à instituição, ordenados de acordo com a sequência alfabética dos nomes de cada autor, com exceção de Machado de Assis, o primeiro presidente da ABL, cujo texto encerrou o programa.
O vínculo com a leitura, como se disse, não é novo na trajetória de Fernanda Montenegro. Mas não remete “apenas” aos trabalhos mais recentes. Também está, de alguma forma, ligado aos primórdios de sua carreira, na Rádio MEC. Há, claro, uma diferença fundamental entre o ofício de radioatriz e a leitura de textos no teatro: a ausência da imagem da atriz, no caso do rádio. O fato é que, já no rádio, Fernanda começou a sugerir imagens através da voz, a modulá-la em tonalidades e vibrações diversas, sem depender da expressão facial. Além disso, o encontro com a palavra poética traz à tona sua excepcional interpretação em Dona Doida – Um Interlúdio, mergulho na obra da escritora Adélia Prado, sob a condução de Naum Alves de Souza, que ganhou a cena na segunda metade da década de 1980.
Na apresentação na ABL, Fernanda confirmou pleno domínio da palavra ao imprimir permanente colorido à leitura, perceptível em alternâncias de velocidade, volume (ao transitar entre o sussurro e a contundência) e atmosfera (ao oscilar entre a leveza e a densidade). Os gestos com a mão direita apoiaram a fala, conferindo certa concretude à palavra, mas sem limitar as possibilidades de sentido. Com precisão de ritmo, a atriz produziu expectativas durante as leituras, afastando o risco da linearidade. Climas emocionais distintos atravessaram os textos, com espaço para o humor – em O Professor Canadense e o Amor, de Godofredo de Oliveira Neto, A Roupa da Rachel, de Heloisa Teixeira, no inusitado diálogo de Só sei que Nasci, de Ignácio de Loyola Brandão, e nas referências literárias e históricas de, respectivamente, Memórias de Capitu, de Domício Proença Filho, e Rio, 1919 – O Carnaval da Espanhola, de Ruy Castro –, a força poética – em Bentevis e Gaviões, de Ana Maria Machado – e a sinceridade sem máscaras – em Ter Mãe, de Rosiska Darcy de Oliveira.
A concepção cênica foi adequadamente simples, com a atriz vestindo roupa neutra e breves inserções musicais entre um texto e outro. Uma proposta parecida com a das leituras que vem fazendo, ainda que caiba destacar a oportuna importância destinada à ópera na abertura de Nelson Rodrigues por ele Mesmo. Mas, no recital na ABL, não são necessários acréscimos diante da habilidade de Fernanda Montenegro em transmitir sensação de instantaneidade à leitura dos variados textos.