A atriz e a palavra
Ana Beatriz Nogueira e Kika Kalache em Sra. Klein, montagem em cartaz no Teatro Prudential até o próximo domingo (Foto: Cris Almeida)
Numa época como a de hoje, em que parte considerável da produção teatral está voltada para a afirmação de posturas identitárias diante da justa necessidade de protestar contra toda forma de exclusão perpetuada ao longo do tempo, um espetáculo como Sra. Klein, centrado na valorização de uma dramaturgia não diretamente atrelada à pessoalidade dos atores, se tornou quase raro. Nesse sentido, essa montagem preenche uma certa lacuna no panorama atual (pelo menos, no que diz respeito à cena do Rio de Janeiro), além de significar um investimento naquilo que passou a ser percebido como árido no acelerado mundo contemporâneo: “confrontar” o espectador com a experiência da escuta de um texto, de uma intensa dialogação sustentada pelas presenças dos intérpretes e não por uma visualidade sedutora.
A peça de Nicholas Wright – encenada (mais de uma vez) por Eduardo Tolentino de Araújo – destaca relações atravessadas por dependência e dominação entre três mulheres: a célebre Melanie Klein, sua filha, Melita, e sua assistente Paula. Há ainda um quarto personagem, invisível, mas onipresente – o outro filho de Melanie, Hans, que morreu. Melanie, que não hesitou em romper barreiras ao se colocar como analista dos próprios filhos, desqualifica profissionalmente Melita, também psicanalista, que procura se posicionar de maneira passional diante da mãe. Estabelece-se entre elas um embate sanguíneo que remete, ao longe, ao conflito entre Arkádina e Treplev, personagens de A Gaivota, de Anton Tchekhov. Já Paula intermedia as disputas entre mãe e filha, com um distanciamento lúcido, ao mesmo tempo em que ambiciona ter Melanie como analista.
Victor Garcia Peralta, que retoma a peça de Wright após uma montagem que dirigiu na Argentina, quebra com a dinâmica realista do texto e propõe numa cena sintética, que tem, como elementos principais, um conjunto de cadeiras simples. Há pouco mais no palco do Teatro Prudential – como o trem de brinquedo simbolizando a infância, em referência tanto ao passado evocado no decorrer da peça quanto, eventualmente, à atividade de Klein como psicanalista –, que vai sendo poluído por outros objetos durante a apresentação. Não se trata, porém, de uma concepção apenas funcional. Existe uma integração entre a cenografia (de Dina Salém Levy) e a iluminação (de Bernardo Lorga), que, pela estrutura rebaixada, sugere ambientação algo opressiva. A luz oscila entre o tom frio – que realça a crise entre mãe e filha – e a especificidade do recorte intimista – que potencializa a interioridade de Melanie Klein. Nos figurinos (de Karen Brusttolin) sobressaem expressivas criações com predomínio da cor preta.
A ausência de elementos dispersivos na montagem ajuda a fazer com que as atenções se concentrem na contracena entre as atrizes. Ana Beatriz Nogueira, que anteriormente interpretou outra personagem real do universo psicanalítico – Sibylle, filha de Jacques Lacan –, surge como uma Melanie Klein que representa diante dos que estão ao seu redor. Uma diva quase sempre defendida, que conserva evidente comportamento hierárquico. Essa personagem que atua durante todo o tempo não se torna, no trabalho de Ana Beatriz Nogueira, uma figura artificial, afetada. Magnetizante, a atriz domina, à perfeição, o desenho emocional de uma Melanie Klein que destila tiradas sarcásticas e irônicas, sem, com isso, perder sua humanidade, manifestada em instantes de desestabilização. Natália Lage escapa do risco da linearidade ao imprimir apreciáveis variações às constantes divergências entre Melita e Melanie. Kika Kalache enfrenta a dificuldade de uma personagem mais focada na escuta, que existe em plano mais discreto, e dosa a contenção com o extravasamento na parte final.
A verborragia de uma peça como Sra. Klein se constitui como um desafio ao público de hoje. No entanto, aqueles que se disponibilizarem encontrarão, além do prazer do texto (em tradução de Thereza Falcão), uma interpretação excepcional de Ana Beatriz Nogueira e uma cena firmada sob base minimalista e eficiente.
Sra. Klein – Texto de Nicholas Wright. Direção de Victor Garcia Peralta. Com Ana Beatriz Nogueira, Natália Lage e Kika Kalache. Teatro Prudential (R. do Russell, 804). De qui. a sáb. às 20h e dom. às 17h. Ingressos: R$ 100,00 (qui. e sex.) e R$ 120,00 (sáb. e dom.). Ingressos promocionais a R$ 35,00 na Plateia B nas sessões de quinta.
SUSANA SCHILD
23 de agosto de 2023 @ 17:02
Excelente análise de peça tão diferenciada!
Parabéns pelo texto Daniel e a todos os envolvidos em Sra.Klein!