Passado e futuro na mesma programação
CURITIBA – O Festival de Teatro de Curitiba celebra seus 30 anos de existência de uma maneira bastante especial: por meio do retorno das atividades presenciais após dois anos de pandemia. Até o próximo dia 10, o público assiste a espetáculos e acompanha debates e lançamentos de livros, atrações que imprimem a efervescência característica da capital paranaense durante o período do festival.
É verdade que o festival ainda não voltou com a mesma configuração de antes da pandemia. Nessa nova edição não há o Fringe, habitual mostra paralela composta por centenas de espetáculos incluídos na programação por ordem de inscrição, sem seleção prévia. Não se pode esquecer, porém, que nos anos imediatamente anteriores à pandemia o Fringe também passou a contar com curadorias internas, direcionando, em alguma medida, o espectador, muitas vezes perdido em meio à quantidade de ofertas.
Mas o festival, dirigido por Leandro Knopfholz e Fabíula Bona Passini, traz novidades fundamentais. Possivelmente a mais importante é a Mostra Pôr do Sol, composta por espetáculos de companhias de Curitiba – Ave Lola, Súbita Companhia e Cia. Ilimitada. Mais do que as montagens em si, o grande feito reside no local onde são apresentados: o Campo das Artes, espaço com 164 mil metros quadrados criado pelo ator Luís Melo, em São Luís do Purunã, região rural a cerca de uma hora de Curitiba, que conta com teatro, refeitório e alojamento. A grande estrutura concebida por Melo se destina à apresentação de espetáculos e à realização de oficinas, de modo a proporcionar um intercâmbio artístico entre coletivos diversos. Há o desejo de estreitar o vínculo com moradores da região, objetivo que já vem sendo concretizado através, por exemplo, de uma programação voltada para a plateia infanto-juvenil. O Campo das Artes é certamente uma aposta corajosa no futuro.
A localização, distanciada do centro urbano, a configuração espacial – o teatro tem disposição móvel, variando conforme a natureza do trabalho – e a inquietação artística que atravessa o projeto como um todo lembram, mesmo que ao longe, a Cartoucherie, sede do Théâtre du Soleil, companhia conduzida por Ariane Mnouchkine desde 1964 e sediada nos arredores de Paris desde 1970. Pode-se evocar também a iniciativa de Paschoal Carlos Magno relativa à Aldeia de Arcozelo, que, na década de 1960, não mediu esforços para criar um centro cultural em Paty do Alferes (RJ). Vale lembrar que Luís Melo já esteve à frente de outra empreitada dedicada às artes: o Ateliê de Criação Teatral (ACT), espaço bucólico no qual o público assistiu a trabalhos de caráter autoral e investigativo em edições anteriores do festival.
Essa 30ª edição conta ainda com a Mostra Ave Lola, que chega à sexta edição, reunindo espetáculos, leituras dramáticas, debates e oficinas. Entre as encenações está Cão Vadio. O título faz menção ao território que recebe personagens expatriados, sem lugar no mundo. Nessa montagem, dirigida por Ana Rosa Tezza, à frente do grupo, há tributo ao teatro e à literatura através da configuração especial (os camarins cenográficos localizados nas extremidades do palco), da valorização de uma estrutura narrativa e de referências assumidas (a peças como Hamlet, de William Shakespeare, e a livros como Cem Anos de Solidão e A Triste e Incrível História de Candida Erendira e sua Avó Desalmada, ambos de Gabriel García Marquez). Personagens como Aureliano e Erendira saltam das páginas dos livros para o palco. No jogo de metalinguagem proposto na dramaturgia, também a cargo de Ana Rosa Tezza, os integrantes do elenco dessa montagem fazem atores que interpretam personagens durante o período de ensaio de um espetáculo. Trata-se, portanto, da apresentação de uma encenação em processo, inacabada, característica que aparece refletida nos figurinos pela metade. As engrenagens teatrais são intencionalmente expostas nas cenas em que os intérpretes se descolam dos personagens e assumem as identidades de atores de uma montagem em estágio de preparação e na assumida estilização que se manifesta nas máscaras bem evidenciadas e nos adereços (bonecos, valendo destacar o do ancião). Essa evidenciação do teatral reforça, ao invés de dissolver, o encanto lúdico de uma arte marcadamente artesanal como o teatro.
Outro trabalho instigante inserido na programação paralela do festival é Derrota, resultado da parceria entre o coletivo Projeto Gompa e a Cia. Incomodete, apresentado no teatro da Biblioteca Pública do Paraná. Sob a direção de Camila Bauer, a atriz Liane Venturella realiza breve experimento a partir do texto de Dimitris Dimitriádis. A estrutura intencionalmente repetitiva do texto, a reduzida movimentação da atriz e fala também propositalmente destituída de inflexões variadas exercem efeito hipnótico sobre o espectador, tragado para dentro do trabalho por uma via sensorial. Ainda fora da Mostra Oficial há diversas iniciativas reunidas na palavra Interlocuções: oficinas, palestras, debates e lançamentos de livros – entre eles, Tempos de Viver e de Contar, publicação comemorativa dos 40 anos do Grupo Galpão.
A tradicional Mostra Oficial ganhou o nome de Lucia Camargo, uma justa homenagem à ex-curadora do festival que morreu em 2020. Parte dos espetáculos diz diretamente respeito à história do festival, na medida em que foram apresentados com sucesso em edições anteriores. São os casos de Conselho de Classe, montagem da Cia. dos Atores para a peça de Jô Bilac, O Casamento, trabalho da Cia. os Fodidos Privilegiados a partir do folhetim de Nelson Rodrigues, Parlapatões Revistam Angeli, do grupo Os Parlapatões, e Till, a Saga de um Herói Torto, texto de Luís Alberto de Abreu, encenação do Grupo Galpão. Também lembrando os 30 anos do Festival de Curitiba, a exposição de fotos de espetáculos do acervo de Lenise Pinheiro, parte delas exposta no Museu Oscar Niemeyer, que acompanhou o evento desde o início como fotógrafa do jornal Folha de S.Paulo.