Fantasia sem perder a naturalidade

Henrique Bulhões e Ayla Gabriela em Pássaro-Memória, curta-metragem de Leonardo Martinelli (Foto: Divulgação)
Leonardo Martinelli transita entre a exposição e a suspensão do real. No curta-metragem Pássaro-Memória, exibido no Festival de Gramado, essa oscilação se manifesta por meio do registro do cotidiano no Rio de Janeiro e do modo como sequências de dança são inseridas nesse cotidiano. “Eu não gosto do realismo”, afirma Lua (Ayla Gabriela), dona do pássaro Memória, que, diferentemente de outras vezes, saiu pela cidade e não voltou para casa.
Lua e Memória adoram musicais. Aparentemente não aqueles superproduzidos, e sim os que nascem do dia a dia, sem maiores preparações ou avisos prévios. Nesse filme de Martinelli, os atores começam a cantar e dançar, surpreendendo o público tanto pela passagem abrupta do diálogo prosaico para as cenas coreografadas quanto pela preservação da naturalidade das vozes, sem qualquer espetacularização. As referências podem ser as mais diversas, de O Guarda-Chuvas do Amor (1964), de Jacques Demy, a Todos Dizem Eu Te Amo (1996), de Woody Allen.
O musical ainda desponta como elemento de fantasia fundamental em meio a uma realidade dura. É o que se percebe nas relações de trabalho com as quais Lua tem que lidar em sua rotina como atendente de um bar. E na luta enfrentada por todos os portadores de corpos trans, frequentemente vitimados pela violência – corpos presentes nesse curta, mesmo que o diretor não aborde de maneira explícita essa problemática.
Seja como for, a interface entre o cinema e as artes cênicas não se dá apenas nos instantes de dança. Desde o início da projeção, o espectador é colocado diante de uma rua-palco. A primeira sequência, marcada pela saída de Memória, mostra o amanhecer na cidade, com a rua sendo lentamente ocupada, com os transeuntes surgindo, pouco a pouco, numa dinâmica cênica.
A partir daí, Lua sai em busca de Memória. Há uma evidente conexão entre o nome do pássaro e a priorização de espaços do centro histórico do Rio de Janeiro. Ocasionalmente irrompem falas didáticas, como “parece que Memória esqueceu como voltar para casa” e “quem sabe Memória não encontra outra forma de pertencer à cidade”. Uma restrição, porém, que não torna o resultado menos instigante.
Pássaro-Memória guarda muitos pontos de ligação com Fantasma Neon (2021), também de Martinelli, curta exibido nos cinemas juntamente com Fogo-Fátuo (2022), longa de João Pedro Rodrigues. Como em Pássaro-Memória, no filme anterior a plateia se deparava com o contraste entre uma realidade implacável (a dos entregadores de aplicativo) e breves e imaginários momentos de escape (através da dança e de uma discreta dose de romantismo), com figuras invisibilizadas (os entregadores) e confrontadas com a violência (os corpos negros, não por acaso com rostos em destaque). A escolha das locações se afastava igualmente dos habituais cartões postais do Rio de Janeiro.