Dança despida de convenções

Encantado, espetáculo de Lia Rodrigues apresentado no Festival de Curitiba (Foto: Humberto Araujo)
CURITIBA – A importância de delimitar fronteiras entre as manifestações artísticas é uma discussão em aberto. Por um lado, definir características para cada arte pode ser considerado um reducionismo, tendo em vista as extensas possibilidades de interface entre elas; por outro, não estabelecer particularidades talvez faça com que as artes permaneçam misturadas de forma indistinta. A inclusão de espetáculos de dança num festival de teatro contribui para a diversidade da seleção e amplia o intercâmbio. Mas, apesar de teatro e dança serem frequentemente unidos numa mesma categorização, os procedimentos e códigos que norteiam esses mundos artísticos não são idênticos.
Um crítico de teatro – capacitado, em tese, para analisar variadas propostas de linguagens de encenações – não está necessariamente habilitado para discorrer sobre um trabalho de dança e vice-versa. Por isso, cabe aqui um cuidado especial nas observações a respeito de Encantado, espetáculo de dança dirigido por Lia Rodrigues (já mostrado no Rio de Janeiro) que integrou a recém-encerrada edição do Festival de Curitiba.
Como tantos espetáculos, Encantado não obedece aos princípios tradicionais da dança. Nos primeiros minutos, bailarinos entram em cena e desenrolam, lentamente e à meia luz, um tapete formado por diversos pedaços de tecido. Logo após, voltam ao palco, nus, e, individualmente, “mergulham” nos tecidos, que se tornam peles. Um ou outro deixa aparente o corpo despido. Essa parte introdutória traz à tona, ainda que ao longe, um dos espetáculos anteriores dirigidos por Lia Rodrigues: Aquilo de que Somos Feitos, no qual os bailarinos desconstruíam com mais contundência a representação ao entrarem nus no espaço – e, naquele caso, circularem entre os espectadores, borrando a separação entre a área destinada à atuação e ao público.
De início, não há música em Encantado. A sonoridade, que remete a referência indígena, é inserida depois de certo tempo e vai aumentando de intensidade. Por meio dos tecidos – muitos com estampas tropicais e/ou kitsch, alguns lisos, sempre com cores vivas –, os bailarinos sugerem imagens concretas, mas sem inibir a abertura para múltiplas interpretações dos espectadores. Encantado é, assim, um espetáculo que parece nascer aos poucos diante da plateia. A cena, porém, não se instala a partir da inserção das sonoridades, da produção de imagens ou da realização da dança; existe antes desses elementos serem introduzidos, no mencionado começo com os bailarinos desenrolando o tapete.
Num determinado instante, quase todos os bailarinos se concentram no fundo do grande palco do Teatro Guaíra com os tecidos emaranhados. No meio e no proscênio, o espaço fica vazio até ser ocupado por um pequeno número de bailarinos, com movimentações em destaque. A cena não se resume aos artistas que se encontram em primeiro plano; também abarca o fundo “caótico”. Esse “caos” passa a imperar quando os bailarinos se cobrem com a maior quantidade de tecidos – e de maneira desordenada, contrastando o excesso intencional com o desnudamento físico inicial. Seja como for, nus ou envolvidos pelos tecidos, os bailarinos compõem um conjunto heterogêneo em que cada um não perde a própria individualidade mesmo ao se reunirem como tribo e seguirem uma única marcação coreográfica. Encantado é um espetáculo que estimula e desafia o olhar do espectador.