Um retrato (quase) transparente
“Eu vivo meu corpo”, diz Viviane de Cassia Ferreira, atriz/personagem apresentada por João Dumans em As Linhas da minha Mão, filme consagrado pelo júri oficial como vencedor da Mostra Aurora da última edição da 26ª Mostra de Cinema de Tiradentes, que tomou conta da histórica cidade mineira durante parte do mês de janeiro. Seguindo um dos princípios da performance, manifestação artística exercida por Viviane, o diretor realça a conexão entre arte e vida. Fornece ao público um retrato transparente – ainda que a presença da câmera determine um nível de atuação em quem está sendo filmado, o que, por si só, inviabiliza uma total transparência – de Viviane, revelada aos poucos diante do espectador.
Dificilmente a plateia conseguirá desvendar Viviane já na cena inicial, marcada por uma conversa sobre graus de consciência em meio a citações de Nietzsche. O desenho dela vai ficando mais nítido ao longo da projeção, à medida em que fala sobre o seu transtorno psíquico, lembra da doença da mãe e comenta sobre os relacionamentos com homens (chamando atenção para a alta voltagem sexual desses encontros) – tudo exposto enquanto fuma um cigarro atrás do outro. É emblemática a sequência em que ela, diante das mazelas de uma pessoa à sua frente, passa de ouvinte a depoente, descortinando sua desestabilização emocional.
Apesar de mostrar eventuais interlocutores, a câmera permanece, com frequência, fechada no rosto de uma autocentrada Viviane. Como os flashes do cotidiano – destacados, no decorrer da sessão, por meio de fotos – ela está em constante movimento, o que não significa necessariamente em mudança contínua. As Linhas da minha Mão traz à tona, ao longe, outra produção sobre uma mulher real, também intensa e passional: Laura (2013), de Fellipe Barbosa. Talvez a maior diferença resida no fato de que Barbosa aparece mais inserido dentro do filme devido ao seu comprometimento com a personagem-título.
As Linhas da minha Mão se inscreve numa corrente bastante valorizada, tanto no cinema quanto no teatro contemporâneo: a do trabalho confessional, no qual o artista relata, em primeira pessoa, experiências particulares, em geral dramáticas (muitas vezes, trágicas). Nesse filme de Dumans, diretor do elogiado Arábia (2017), o autodesnudamento de Viviane transcende a esfera das palavras e se dá em sua própria fisicalidade, no modo como se expressa diante do outro e do mundo.