Facetas de um múltiplo Ziembinski
Nos minutos iniciais de Zimba – documentário exibido no Festival É Tudo Verdade que acaba de desembarcar nos cinemas -, o público se depara com imagens da morte do encenador e ator Zbigniew Ziembinski (1908-1978). Joel Pizzini apresenta um exercício imaginativo (um argumento original de Ziembinski) sobre um ator consagrado que forja a própria morte para dimensionar a sua relevância no mundo e, ao notar seu crescente esquecimento, anseia por revelar a todos que está vivo. Já perto do término da projeção, Ziembinski fala sobre seus primeiros anos na Polônia natal – o nascimento, a perda precoce do pai. Nas lembranças do começo de sua existência, a morte se mantém presente. Pela boca de um de seus personagens, Ziembinski constata que “só depois de morto me fizeram ver o quão importante é a vida”. Há uma estrutura coerente, redonda, que conecta os pontos extremos desse filme, conjugando transcendência e impotência diante da vida.
Essa trajetória intensa, ao contrário do que possa parecer, não surge disposta em ordem cronologicamente inversa. Na montagem, Idê Lacreta rompe de maneira mais complexa com uma tradicional linha do tempo. Promove um instigante embaralhamento. Não ambiciona expor todas as contribuições de Ziembinski, mas não abre mão de fornecer ao espectador uma perspectiva panorâmica dos principais feitos do artista: os trabalhos realizados ainda na Polônia, a vinda para o Brasil em 1941, o encontro com o grupo amador Os Comediantes -, fez a iluminação da remontagem de A Verdade de Cada Um, de Pirandello, dirigiu espetáculos, atingindo o ápice na revolucionária encenação de Vestido de Noiva, peça de Nelson Rodrigues, marcada pela sintonia com o cenógrafo Santa Rosa -, o ingresso no Teatro Brasileiro de Comédia (TBC) – onde estabeleceu elo inquebrantável com a atriz Cacilda Becker – e a sua tendência, como ator, a investir em composições físicas e vocais dos personagens, a exemplo de sua atuação na novela O Bofe, de Braulio Pedroso, em 1972. “Eu aprendi a ver o brasileiro através das caricaturas de Ziembinski”, disse Antunes Filho, que, em 1974, dirigiu, no programa Teatro Dois, da TV Cultura, uma versão de Vestido de Noiva.
Ao longo de quase todo o filme não há uma correspondência direta entre texto e imagem. A exceção é o momento em que, diante da evocação da montagem de Vestido de Noiva, peça de Nelson Rodrigues, pelo grupo Os Comediantes, sob a direção de Ziembinski, em 1943, aparecem imagens externas e internas do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, palco onde o espetáculo aconteceu. Essa conexão, porém, não se reduz a em mero didatismo e o filme permanece estimulando o espectador a traçar articulações a partir do material que bate na tela.
Seja como for, o acúmulo de tempos que atravessa Zimba não se restringe à montagem. Está na gênese do projeto, a julgar pelo entrelaçamento de passado e presente concretizado por Pizzini. As imagens de arquivo trazem à tona flagrantes de uma Europa destruída durante a Segunda Guerra Mundial, depoimentos de atores e atrizes (Fernanda Montenegro, Walmor Chagas, Paulo José, Domingos Oliveira) sobre Ziembinski e o registro de Nelson Rodrigues caminhando por Copacabana. Atrizes emblemáticas realçam facetas fundamentais da jornada do artista. Nathalia Timberg, que interpretou Madame Clessi na mencionada versão de Vestido de Noiva, a cargo de Antunes Filho, e foi dirigida por Ziembinski na novela A Rainha Louca, de Glória Magadan, em 1967, resgata informações sobre os passos profissionais do encenador, na Polônia. A atriz, que cursou Belas Artes, frisa como Ziembinski canalizou o dom da pintura para a prática teatral. Nicette Bruno rememora, em particular, a montagem de Ziembinski, no Teatro Popular de Arte (TPA), para Anjo Negro, uma das peças míticas de Nelson Rodrigues, em que integrou o elenco no papel da jovem Ana Maria. Foi uma escolha dramatúrgica ousada para os padrões do ano de 1948, apesar do protagonista, Ismael, não ter sido interpretado por Abdias do Nascimento, conforme o desejo de Nelson, e sim por Orlando Guy, ator branco que pintou a própria pele. Camilla Amado, que participou, como Alaíde, de outra versão de Vestido de Noiva, assinada por Ziembinski, em 1976, dá vazão a percepções significativas do texto e do contato com o encenador.
Essas impressões preciosas são compartilhadas com um elenco jovem (Bárbara Vida, Ana Paula Quevedo, Fernanda Huffel, Jack Berraquero) numa espécie de contracena entre o presente e diferentes camadas de passado, considerando os espetáculos concebidos a partir da peça de Nelson Rodrigues. Uma proposta de Pizzini relacionada ao jogo temporal do filme. O resultado soa algo artificial. Mas não diminui o valor desse novo mergulho do cineasta no universo artístico – e, particularmente, no teatral – depois de Glauces – Estudo de um Rosto (2001), curta-metragem em que comprovou a multiplicidade da atriz Glauce Rocha por meio de uma colagem de suas atuações em diversos trabalhos, com recorte, como o título indica, na expressão facial. O rosto de Ziembinski também é abordado em Zimba como uma fisionomia de traços determinantes – contrariados, contudo, através de caracterizações surpreendentes para os personagens que interpretou. Uma evidência da versatilidade de um artista que, aqui, recebe um retrato abrangente, mas nem por isso disperso.
carmattos
6 de outubro de 2021 @ 12:52
Uma beleza de comentário, que evidencia profunda compreensão da proposta do filme.
danielschenker
6 de outubro de 2021 @ 13:07
Muito obrigado, Carlinhos!