Desafios de um cinema à margem do sistema
Lista de Desejos para Superagüi, filme de Pedro Giongo: melhor filme da Mostra Aurora (Foto: Divulgação)
A Mostra de Cinema de Tiradentes vem se desenvolvendo sem perder de vista a sua característica de base: a valorização de um cinema contemporâneo autoral, inventivo e eventualmente experimental, desconectado da reedição dos ingredientes conhecidos normalmente encontrados nas produções comerciais.
É surpreendente que a Mostra chegue à 27ª edição mantendo-se, até certo ponto, desconectada das pressões do mercado. Consegue, a cada ano, levantar uma estrutura considerável – perceptível na organização do evento –, oferecida gratuitamente ao público. A Mostra se tornou símbolo de preservação de um cinema que luta para existir. Reúne filmes que, por suas características específicas, muitas vezes não chegam ao circuito exibidor. Se por um lado garantir a existência desse cinema é fundamental, por outro louvar a caminhada à margem do sistema pode gerar certa preocupação num momento em que o cinema brasileiro luta para trazer os espectadores às salas.
Em pontos específicos da sua programação, a Mostra se abre a um diálogo mais direto com a plateia. Foi o caso, na recém-encerrada edição, da inclusão de Mussum – O Filmis, de Silvio Guindane, produção centrada no lendário integrante do grupo Os Trapalhões. O filme foi mostrado na praça de Tiradentes – e a própria realização de sessões ao ar livre, no coração da cidade, indica um desejo de evocação de um cinema de formato popular, valendo ressaltar que também não há cobrança de ingressos para as produções exibidas em espaços fechados.
Se existe algum obstáculo em termos de acesso aos filmes, este não é de ordem econômica; os possíveis obstáculos dizem respeito aos desafios que os filmes lançam ao público, que precisa empreender movimentos de abertura para se relacionar com eles. É evidente que a disponibilidade – ou a ausência dela – não está atrelada à classe econômica do espectador, mas talvez a um contato prévio com uma linguagem cinematográfica menos padronizada, ainda que não se possa dizer que os apreciadores “virgens” não têm com ser afetados pelo contato com filmes desconcertantes, árduos ou que não forneçam quaisquer auxílios no estabelecimento de conexões. Mas é fato que a possibilidade de alcance desses trabalhos fora do circuito protegido do festival tende a ser restrita.
A principal parte da programação da Mostra de Tiradentes é a Aurora, destinada a filmes de realizadores em início de trajetória. Esse ano, o júri oficial – composto por Affonso Uchoa, Aline Motta, Juliana Costa, Lia Bahia e Uirá dos Reis – concedeu o prêmio ao longa-metragem Lista de Desejos para Superagüi, de Pedro Giongo, e uma menção honrosa a Maçãs no Escuro, de Tiago A. Neves. Ao longo do tempo, o evento tem crescido e ganhado novas mostras paralelas, que, em todo caso, confirmam a proposta central, no que diz respeito ao destaque a filmes de assinatura marcante, sejam os realizados por diretores iniciantes, sejam por veteranos (caso de Julio Bressane, representado, nessa edição, por Leme do Destino) que permanecem desatrelados das amarras de um cinema atado a convenções. Essa característica é perceptível no próprio nome de determinadas mostras: Olhos Livres, Autorias, Deslumbramento, Invenção, Olhares e Formação.
Parte considerável das mostras do evento é destinada à exibição de curtas-metragens, formato que dificilmente encontra espaço no circuito e normalmente exibido em festivais, mas não com o mesmo destaque que em Tiradentes. A realização de curtas permanece envolta por um preconceito: costuma ser vista como etapa de amadurecimento do cineasta rumo à concepção de um longa-metragem, e não como obra em si. Tiradentes também reúne, mesmo que em menor quantidade, médias-metragens, parcela de produção que sofre ainda mais diante da falta de inserção não apenas no circuito como na programação dos festivais. A pulsação do evento pode ser constatada não “só” nas sessões dos filmes, mas nos consistentes debates realizados nos dias seguintes às exibições.
Saíram premiados dessa edição os curtas Eu fui Assistente do Eduardo Coutinho, de Allan Ribeiro (escolhido pelo júri oficial e pelo júri do Canal Brasil), e Soneca e Jupa, de Rodrigo R. Meireles. O júri oficial também contemplou Kerexu Martim, diretora do curta Aguyjevete Araxi’l com o Prêmio Helena Ignez. Já o Júri Jovem destinou o Troféu Carlos Reichenbach ao longa Aquele que viu o Abismo, de Negro Léo e Gregório Gananian. Entre as novidades dessa última edição esteve a presença de um júri de críticos da Abraccine – formado por Francisco Carbone, Rafael Carvalho e Viviane Pistache –, que avaliou os filmes da Mostra Autorias e premiou Estranho Caminho, de Guto Parente.
O crítico viajou a convite da organização do festival