Acúmulo de tempos e de corpos
O espectador no centro da cena: Frequência Ausente 19Hz (Foto: Gustavo Vaz)
FESTIVAL DE CURITIBA – Um projeto como o de Frequência Ausente 19Hz tensiona o conceito tradicional de teatro ao suprimir a presença do ator. Nessa experiência individualizada – cada espectador recebe um fone da produção, plugado ao próprio telefone celular, por meio do qual ouve indicações do personagem –, o espectador tem a sensação de que o ator está presente (por meio da voz, de sons de passos, de respiração), mas não se depara com a sua imagem ao vivo.
Todo o trabalho do ator foi previamente gravado. Está, portanto, vinculado ao passado. Ao acionar a gravação, o espectador é levado a trilhar um percurso pela cidade, refazendo o trajeto uma vez realizado pelo personagem. Dessa forma, Frequência Ausente 19Hz se torna uma vivência presente para o espectador. Essa articulação entre passado (da obra) e presente (para aquele que assiste) remete ao cinema. Ao ser levado a transitar por lugares por onde o personagem passou, o espectador estabelece as suas próprias impressões. Nesse sentido, descola-se, em alguma medida, do personagem. Logo no início, essa preservação de identidades vem à tona de modo ambíguo: por um lado, o espectador é encaminhado para uma cadeira localizada no centro de uma sala diante de outras cadeiras vazias – na mesma posição do personagem, um ator que se deparou com absoluta falta de público na noite de estreia de seu espetáculo; por outro, o personagem pede que o espectador o siga, colocando-se na posição de narrador/guia.
A narração implica em algum grau de distanciamento em relação ao fato vivenciado. Essa distância é minimizada na interpretação de Gustavo Vaz – que assina a adaptação do texto, a partir de A Náusea, de Jean-Paul Sartre, além da direção (em parceria com Bernardo Galegale) –, que imprime carga dramática, possivelmente diante do desafio de corporificar o personagem tão-somente por meio da voz. A dramaticidade também é acentuada pelo som das trovoadas que cortam a cidade durante boa parte do percurso catártico do personagem, que, assombrado pela rejeição absoluta, vaga desnorteado.
Ainda atravessado pelo abandono, o personagem destaca observações históricas sobre a cidade que soam pouco orgânicas dentro da dramaturgia. O objetivo parece ser o de fazer com que o espectador perceba o personagem como parte integrante de um processo histórico. Mas, justamente por ter sido concebido para ser apresentado em cidades diferentes é que Frequência Ausente 19Hz não estabelece, de fato, vínculo com nenhuma. Talvez porque, apesar de todo o destaque ao meio externo, o personagem desenvolva cada vez mais um processo de autopercepção. Não por acaso, o momento em que a conexão entre o estado emocional do personagem e a história da cidade se estabelece é aquele em que ele observa que uma estátua está olhando para dentro de si.
Há, em todo caso, o corpo da cidade. O espectador percorre um trajeto considerável por Curitiba, ainda que simbólico, na medida em que, diferentemente do sinalizado pelo personagem, circula por área restrita, sem mergulhar nas entranhas da cidade, tarefa de difícil concretização cênica. De qualquer modo, Frequência Ausente 19Hz exige que o ator se engaje fisicamente numa inversão habitual de outro princípio do acontecimento teatral: aqui a exigência recai sobre o corpo do espectador e não sobre o do ator. Este permanece invisível, durante a maior parte do tempo, aos olhos do espectador. Essa invisibilidade informa bastante sobre um personagem que sofreu uma espécie de apagamento ao ver negada a existência de seu trabalho, apesar de a ausência de público não implicar necessariamente na anulação do trabalho. Em dado instante, o personagem narra para o espectador a desmaterialização de seu corpo, etapa fundamental para que ele perceba no corpo do outro, do estranho, o seu próprio.
O crítico viajou a convite da organização do festival.