Clara Carvalho e Gabriela Westphal em O Jardim das Cerejeiras, montagem dirigida por Eduardo Tolentino de Araujo (Foto: Ronaldo Gutierrez)
SÃO PAULO – Por meio do jardim das cerejeiras que intitula sua peça, Anton Tchekhov aborda, em campos distantes – talvez opostos –, o valor afetivo e o pragmático. Para os aristocratas, liderados por Liuba, que vivem na grande propriedade, o jardim, além da beleza, é a evocação de um passado glamouroso, tão distinto do contexto com o qual se deparam no presente, marcado pela derrocada econômica, por mais que evitem enfrentá-lo de maneira direta. Para Lopakhine, oriundo de classe social bem menos abastada, o jardim é o símbolo de um passado de escravidão e conquistar toda a propriedade significa uma virada de mesa gloriosa, a possibilidade de mudar o curso da história.
Nem os aristocratas devem ser percebidos apenas como alienados inconsequentes, nem cabe taxar de vilão o novo dono do dinheiro. Há sinceridade tanto nas ligações afetivas externadas pelos personagens economicamente privilegiados quanto nos avisos de Lopakhnine acerca da situação financeira deles. Liuba distribui levianamente o pouco que lhe resta e se entrega aos relacionamentos com passionalidade; já Lopakhine é prático, talhado para a esfera concreta da vida, talento que não demonstra, porém, quando tenta expressar seus sentimentos. Através de Firs, o mordomo esquecido dentro de casa, Tchekhov parece anunciar o término de uma lógica de funcionamento norteada por rígidos valores hierárquicos entre patrões e empregados, mas também de um tempo em que o dinheiro não regia – pelo menos, não completamente – os acontecimentos.
Tchekhov registra um importante momento de transição do mundo por meio de um instante nas vidas de seus personagens. As existências deles transcendem as delimitações de início e fim. Quando a peça começa, os personagens estão chegando à propriedade e, ao final, vão embora rumo a destinos variados. Diretor da montagem em cartaz no Teatro da Aliança Francesa, Eduardo Tolentino de Araujo expande as ações para além das bordas do palco através do destaque a sons do cotidiano (o jogo de bilhar de Gaev) e de atos definitivos (a derrubada da propriedade), ouvidos, mas não vistos pela plateia.
O espectador tende a acreditar nesses sons realizados fora de cena (sonoplastia a cargo de Alexandre Martins), ainda que não seja o mesmo que testemunhar os acontecimentos (os sons precisam ser identificados, explicados). Eduardo Tolentino tensiona o realismo por meio da proposta cênica. Nos primeiros minutos, ambienta a ação no quarto das crianças com objetos em miniatura. Depois esvazia o palco, deixando sua estrutura à mostra. Insere elementos sintéticos, mas representativos. Sobressaem na cenografia as malas e o sofá gastos, reflexos de que a época de opulência dos aristocratas ficou para trás, e o armário, dentro do qual personagens entram, sugerindo pertencerem a um contexto em vias de se extinguir. A iluminação de Nelson Ferreira localiza o público em relação às partes do dia ou da noite nas quais transcorre a ação, mas não se reduz a esse efeito didático, na medida em que favorece, de modo determinante, a instalação de atmosferas. Diferentemente das emoções arrebatadas que imperam na cena, principalmente no clímax, a montagem é atravessada por tons neutros – o preto e o branco nos bem acabados figurinos de Rosângela Ribeiro.
No elenco, composto por alguns integrantes antigos do Grupo Tapa, há certa irregularidade. Clara Carvalho transita com habilidade pelos estados emocionais de Liuba, em especial na passagem em que revela informações sobre o passado. Sergio Mastropasqua, que interpreta Lopakhine, tem uma cena particularmente expressiva: aquela em que volta do leilão e comemora a compra da propriedade. Adriano Bedin dá vazão aos interesses nada nobres de Iacha. Outros atores sinalizam dificuldade diante dos personagens de Tchekhov. Guilherme Sant’Anna não ultrapassa a construção formal na transmissão do apego a valores obsoletos e da fragilidade física de Firs. Alan Foster surge inseguro como Trofimov, a julgar pela cena do embate com Liuba, apesar de encontrar o tom na breve conversa com Lopakhine ao final. E Mariana Muniz não consegue tornar marcantes as rápidas intervenções da governanta Carlota.
Companhia que mantém postura de resistência por meio da valorização de uma dramaturgia consistente, o que não implica em espetáculos subservientes aos textos, o Tapa se debruça agora sobre uma obra consagrada em montagem que não permanece atada a convenções. Evidencia investimento numa cena lacunar, que intencionalmente não expõe tudo, afastando-se de ilustrações e reiterações.