Samba Futebol Clube, musical de Gustavo Gasparani (Foto: Leonardo Aversa)
A concentração em poucos espetáculos marcou as indicações do primeiro semestre ao Prêmio Shell. O musical Samba Futebol Clube, com seis indicações, o teatro gestual de Irmãos de Sangue e a apropriação de As Três Irmãs, de Anton Tchekhov, materializada em E se elas fossem para Moscou?, ambos com cinco, monopolizaram as atenções do júri composto por Ana Achcar, Bia Junqueira, João Madeira, Macksen Luiz e Moacir Chaves.
Um direcionamento natural, em se tratando do panorama apresentado na cena carioca de 2014 e do fato de o júri não incluir espetáculos de São Paulo, uma vez que o Prêmio Shell contempla separadamente as duas cidades – o que explica a ausência de trabalhos como 12 Homens e 1 Sentença (apesar de boa parte do elenco ter sido formado no Rio de Janeiro), O Duelo e Contrações. Além dessas três montagens, apenas Ricardo III, 2 X Matei e Sacco e Vanzetti receberam indicações isoladas.
Os três espetáculos mais destacados são muito diferentes, mas possuem, como pontos em comum, o caráter autoral e a continuidade de linhas de pesquisa. Gustavo Gasparani segue investindo num musical de temática brasileira em que entrelaça, de maneira habilidosa, canções e textos; André Curti e Artur Ribeiro, integrantes da Cia. Dos à Deux, abrem mão da palavra em espetáculo de refinada gramática cênica; e Christiane Jatahy demonstra inquietude diante da investigação em torno da interface entre teatro e cinema.
Indicados:
Autor
Gustavo Gasparani (Samba Futebol Clube)
Direção
André Curti e Artur Ribeiro (Irmãos de Sangue)
Christiane Jatahy (E se Elas Fossem para Moscou?)
Gustavo Gasparani (Samba Futebol Clube)
Ator
André Curti (Irmãos de Sangue)
Artur Ribeiro (Irmãos de Sangue)
Gustavo Gasparani (Ricardo III)
Atriz
Julia Bernat (E se Elas Fossem para Moscou?)
Stella Rabello (E se Elas Fossem para Moscou?)
Cenário
André Curti e Artur Ribeiro (Irmãos de Sangue)
Marcelo Lipiani (E se Elas Fossem para Moscou?)
Figurino
Antonio Medeiros e Tatiana Rodrigues (2 x Matei)
Marcelo Olinto (Samba Futebol Clube)
Iluminação
Bertrand Perez e Artur Ribeiro (Irmãos de Sangue)
Paulo Cesar Medeiros (Samba Futebol Clube)
Música
Felipe Radicetti (Sacco e Vanzetti)
Nando Duarte (Samba Futebol Clube)
Inovação
Christiane Jatahy pela construção de uma dramaturgia singular através da integração de teatro e cinema no espetáculo E se Elas Fossem para Moscou?
Elenco de Samba Futebol Clube, que tornou possível a renovação da estrutura do musical através de sua capacidade de atuar com excelência nas diversas funções do gênero
Vera Novello e Cândido Damm em Vianninha Conta o Último Combatente do Homem Comum, em cartaz no Teatro Ginástico (Foto: Claudia Ribeiro)
O espetáculo Vianninha Conta o Último Combatente do Homem Comum realça algumas vertentes destacadas na trajetória do encenador Aderbal Freire-Filho: a conexão com a dramaturgia de Oduvaldo Vianna Filho (autor visitado anteriormente por Aderbal por meio das montagens de Moço em Estado de Sítio e Mão na Luva), a proximidade com o texto brasileiro e a problematização da estrutura realista. No que se refere a este último aspecto, Aderbal volta a evidenciar os mecanismos de construção da cena ao invés de procurar apagá-los com o intuito de transmitir ao público uma sensação de organicidade.
Essa evidenciação da construção pode ser percebida através do modo como os atores eventualmente manipulam o cenário de Fernando Mello da Costa – num determinado momento, as cadeiras são carregadas como escudos, sublinhando as tomadas de posição de cada personagem, bem como os seus recursos de defesa; da operação realizada por Tato Taborda sobre conhecida música – proposta que coloca a plateia diante de uma espessura formada entre a repetição da música e a fala de um dos filhos em relação à sua impotência frente à situação dos pais; e da inserção de um palhaço – que contrasta com a austeridade da cena e observa a circunstância lançada pelo texto (a separação forçada de um casal idoso a partir do instante em que não tem mais como arcar com as despesas da casa onde mora e passa a depender dos filhos) pela via do humor cruel.
Entre essas interessantes proposições, a mais questionável é a inclusão do palhaço (mais pela própria ideia do que pela execução do ator Kadu Garcia, que, oportunamente, também interpreta os personagens menores), considerando que se torna uma figura um tanto impositiva. Em todo caso, ao chamar atenção para a construção da cena, Aderbal Freire-Filho tende a fazer com que o espectador aprecie a construção da peça de Vianninha, que empregou alguns procedimentos como apresentar em paralelo as jornadas dos pais separados – ele morando com a filha em São Paulo, ela com o filho no Rio de Janeiro. E a exposição da construção da cena parece estar ligada a uma homenagem de Aderbal ao Teatro de Arena (que tinha em Vianninha um dos seus principais integrantes), explicitada por meio do título (em substituição ao original, Em Família) que remete aos espetáculos Arena Conta…, marcados pela prática do Sistema Coringa formulado por Augusto Boal.
Conforme já dito, a cenografia tensiona a cena realista. Ao mesmo tempo em que sugere os espaços onde se desenrolam a ação – através das janelas (as da casa de Miguel Pereira, no início, e as envelhecidas dos apartamentos), elemento que habilmente sintetiza a mudança no padrão de moradia sofrida pelo casal idoso –, o cenário adquire caráter simbólico que transcende a mera localização – algo detectado com a grande mesa, as mencionadas cadeiras e os diversos objetos dispostos nas laterais do palco como entulhos. Os figurinos de Ney Madeira, Dani Vidal e Pati Faedo (Espetacular Produções & Artes) priorizam a neutralidade do preto, do branco e das gradações de cinza, complementando o visual sóbrio da montagem. A iluminação de Paulo Cesar Medeiros é aberta no descortinar da realidade familiar e das verdades de cada um, expostas à medida em que as máscaras de convivência caem, e mais calorosa nas passagens que dimensionam a solidão do casal idoso. No elenco, Ana Velloso, Cândido Damm, Gillray Coutinho, Isio Ghelman, Vera Novello e, em especial, Ana Barroso demonstram sintonia com a proposta da encenação e valorizam os conflitos de seus personagens.
Em Vianninha Conta o Último Combatente do Homem Comum, Aderbal Freire-Filho estimula o espectador a decodificar códigos cênicos, postura que suscita curiosidade em relação à montagem.
Samba Futebol Clube está em cartaz no Teatro II do CCBB (foto: Leonardo Aversa)
Gustavo Gasparani vem investindo em musicais de temática brasileira e, mais especificamente, voltados para a história do Rio de Janeiro, a julgar pela busca de matéria-prima na influência francesa sobre a Capital Federal (em Oui Oui… A França é Aqui! A Revista do Ano), na efervescência teatral de uma região do Centro (As Mimosas da Praça Tiradentes) e em lendária escola de samba (Otelo da Mangueira). Sua abordagem, porém, não é didática. Gasparani tende a promover fusão de tempos por meio de estruturas não lineares.
É exatamente o que se verifica em Samba Futebol Clube, espetáculo que entrelaça músicas e textos concebidos em torno do universo do futebol. Auxiliado pela pesquisa musical de Alfredo Del Penho e pela de textos de João Pimentel, Gasparani mescla produção cultural que atravessa décadas, sem, contudo, incorrer na ordenação cronológica. Afasta-se de uma perspectiva mais convencional, que tornaria bem menos complexa a construção do roteiro. Há, em todo caso, uma distinção assumida entre os dois atos que compõem o espetáculo atualmente em cartaz no Teatro II do Centro Cultural Banco do Brasil. No primeiro impera o ponto de vista dos torcedores; no segundo, a ótica dos jogadores.
Esta distinção não faz com que o resultado seja menos ousado. A encenação só se revela um pouco menos inventiva no emprego do telão (elemento emblemático no estádio de futebol), que, apesar de trazer uma simpática alternância entre animação e imagens de arquivo, adquire caráter algo ilustrativo em relação ao destacado a cada momento. Um problema que pode ser detectado, em certos instantes, na iluminação de Paulo César Medeiros. A cenografia de Marcelo Lipiani coloca o público diante de um recorte de arquibancada, mas que também parece um espaço neutro. Os figurinos de Marcelo Olinto primam pela informalidade. No entanto, um ou dois figurinos (no primeiro ato) destoam inexplicavelmente desse direcionamento.
Seja como for, restrições eventuais e localizadas não ameaçam um trabalho muito bem-sucedido, repleto de cenas divertidas, como a locução realizada pelos atores na abertura do espetáculo e a do hino nacional no início do segundo ato. Gustavo Gasparani demonstra segurança tanto nas passagens feéricas, esfuziantes, quanto nas menos aceleradas. A direção de movimento e as coreografias de Renato Vieira são particularmente inspiradas e a direção musical de Nando Duarte merece elogios. Gasparani conduz um elenco bastante entrosado e homogêneo. Os atores – Alan Rocha, Cristiano Gualda, Daniel Carneiro (especialmente bem), Gabriel Manita, Jonas Hammar, Luiz Nicolau, Rodrigo Lima e Pedro Lima – apresentam bom domínio vocal e habilidosa composição de tipos. Samba Futebol Clube comprova que Gustavo Gasparani segue fazendo musical de qualidade e de maneira singular.
Lu Camy em A Moça da Cidade: em busca do homem ideal (Foto: Gui Maia)
A Moça da Cidade é um espetáculo despretensioso construído em torno da evocação da atmosfera das novelas radiofônicas. O autor Anderson Bosh reconstitui os tradicionais recursos dos programas de rádio de décadas passadas que, diante da ausência de imagens, eram empregados com o intuito de estimular a imaginação do ouvinte. Radioatores interpretam uma história cômica que se transforma em melodrama ao final – a de uma moça interiorana, Ambrosina, determinada a viver na cidade grande. Logo que se depara com a nova paisagem, ela se percebe destoante. Mas não esmorece em sua busca pelo homem ideal, insatisfeita com o que a realidade acena.
Em cartaz na Sala Mutiuso do Espaço Sesc, a montagem de Rodrigo Pandolfo valoriza, de início, o registro dos radioatores. A partir da chegada da protagonista ao Rio de Janeiro, os atores se afastam um pouco do microfone e passam a se dedicar mais às composições dos personagens. As peculiaridades das radionovelas, como as sonoplastias, permanecem ao fundo da cena. Talvez o diretor pudesse ter potencializado mais esse plano, algo ocultado pela distância e pela barreira de um biombo transparente.
A cenografia de Miguel Pinto Guimarães é formada por biombos e painéis utilizados para projeções de imagens antigas do Rio de Janeiro (vídeos de Felipe Bond) e de cenas do filme Uma Rua chamada Pecado, versão cinematográfica de Elia Kazan para a peça Um Bonde chamado Desejo, de Tennessee Williams, uma boa escolha, ainda que citada com certo excesso. O efeito obtido na cena da luta entre Ambrosina e Leitinho, seu pretendente, soa dispensável. De qualquer modo, o sabor nostálgico propiciado pelas projeções, também decorrente da interação com a iluminação de Tomás Ribas, é agradável.
Os figurinos de Bruno Perlatto são propositadamente exagerados para Ambrosina, frisando sua inadequação ao contexto no qual desembarca. No elenco, Lu Camy tem mais oportunidades e faz de Ambrosina uma figura empática e divertida. Dida Camero e Gabriel Delfino Marques se desdobram em mais de um papel, destacando-se, no caso dela, como a dona da pensão e, no dele, como o pai de Ambrosina, graças a bons trabalhos de voz.
A montagem de A Moça da Cidade não ultrapassa a esfera da simpatia, realçada por referências – além do filme de Kazan, a menção à cadela Laika, lançada ao espaço – que trazem à tona a década de 1950. Em se tratando, porém, da primeira direção de Rodrigo Pandolfo, o resultado evidencia méritos consideráveis.
Jaime Leibovitch e Bruce Gomlevsky em Festa de Família (Foto: Tatiana Farache)
À frente da Cia. Teatro Esplendor, Bruce Gomlevsky vem realizando um trabalho importante ao investir em montagens de textos contundentes, tanto de autores consagrados quanto de outros pouco difundidos no Brasil, numa época em que a palavra nem sempre é valorizada. As recentes escolhas de Bruce comprovam determinação em descortinar painéis de famílias emocionalmente arruinadas, a julgar pelas encenações de A Volta ao Lar, de Harold Pinter, O Homem Travesseiro, de Martin McDonagh, e, agora, de Festa de Família e O Funeral, ambos de Thomas Vinterberg (o primeiro texto escrito em parceria com Mogens Rukov e Bo Hr. Hansen e o segundo, com Rukov), que fazem hoje suas últimas apresentações no Mezanino do Espaço Sesc.
Encenado pelo próprio Bruce, em 2009, a partir de adaptação do filme de Vinterberg representativo do movimento Dogma 95, Festa de Família é centrado numa revelação bombástica feita por Christian durante o jantar comemorativo dos 60 anos do pai, Helge, algo que modifica a estrutura de funcionamento de toda a relação familiar. Em O Funeral, o público reencontra integrantes da mesma família, que se reúnem dez anos depois, na ocasião do funeral de Helge, e são desestabilizados por um acontecimento – fato novo, mas um desdobramento da tragédia de décadas atrás. A possibilidade de assistir em sequência às montagens dos dois textos evidencia que os autores procuraram destacar a tendência do ser humano de repetir com os outros as suas experiências traumáticas.
São duas obras de qualidade, cabendo apenas fazer restrições específicas. Em Festa de Família, a passagem do café da manhã, ocorrida após as sucessivas catarses da noite anterior, soa idealizada, na medida em que os vínculos entre os personagens já parecem bem resolvidos, como se não houvesse necessidade de um tempo maior para administrar tudo o que acabou de ser trazido à tona. O desfecho de O Funeral, inclusive, mostra que ainda haveria muito a elaborar. No entanto, é preciso chegar até lá para ter a sensação de se estar diante de um quadro familiar verossímil. Nesse segundo texto, o problema reside na produção de um mistério de previsível elucidação.
Bruce Gomlevsky e Raul Guaraná em O Funeral (Foto: Tatiana Farache)
Os dois espetáculos, dirigidos por Bruce Gomlevsky, sobressaem pelo modo como inserem o público dentro de dadas configurações espaciais (em ambos os casos, de Bel Lobo, função assumida com Bruce em O Funeral). Em Festa de Família, parte da plateia é convidada a se sentar à mesa de jantar juntamente com os personagens/atores. A outra acompanha a ação nas laterais do espaço, dividida em dois blocos, um disposto de frente para o outro, como em O Funeral – apesar de, nessa encenação, os espectadores ficarem em espaço ainda mais condensado. Há outra diferença: na primeira montagem, parte do público envolve a cena; na segunda é envolvido por ela em diversos momentos. A localização dos espaços também difere. Em Festa de Família, boa parte da ação se passa na sala de jantar. Ao mesmo tempo em que se preocupa em reconstitui-la, Bruce se liberta do formato realista ao fazer menção a outros ambientes (os quartos da casa, por exemplo) no espaço vazio do meio da grande mesa e ao suprimir a comida dos pratos. Em O Funeral, a localização é menos precisa. E muito do que ocorre não é visto pelo espectador, que vai sendo informado pelos personagens.
Dotadas de alta carga dramática, as montagens realçam o potencial dos textos para eletrizar a plateia. Em Festa de Família, a iluminação (criação original de Maneco Quinderé adaptada para o novo espaço por Elisa Tandeta) não segue o caminho mais fácil da luz aberta durante o jantar e potencializa penumbras. Uma opção coerente com um texto que aborda a exposição de material aterrorizante até então interditado. As canções infantis entoadas ao longo da comemoração (trilha original de Marcelo Alonso Neves) contrastam, de maneira incômoda, com o teor sinistro das revelações e espelham o crescente descontrole dos personagens, cada vez mais desmascarados em suas omissões e em seus preconceitos arraigados. Contudo, em O Funeral existe um problema de concepção para as cenas de sonho, nas quais os personagens evocam o falecido Helge. Logo na entrada do teatro, o público já se depara com a figura dele num caixão. Portanto, não há sentido em criar uma atmosfera especial, de irrealidade – através da iluminação, da música e do registro interpretativo – para essas passagens.
Tanto os atores que participam de uma das montagens (Thiago Guerrante, Glauce Guima, Ricardo Ventura, Felipe Cabral, Luiz Felipe Lucas, Sofia Viamonte, Silvio Matos, Thalita Godoi e Raul Guaraná) quanto os que surgem em ambas (Bruce Gomlevsky, Carolina Chalita, Gustavo Damasceno, Jaime Leibovitch, João Lucas Romero, Luiza Maldonado e Xuxa Lopes) demonstram sintonia com a proposta do trabalho. Eventuais desníveis não ameaçam o bom resultado. As encenações de Festa de Família e O Funeral compõem um projeto bastante relevante no panorama atual do teatro no Rio de Janeiro.
Kelzy Ecard, Gabriel Vaz e Carolina Ferman em Desalinho (Foto: Virginia Boechat)
As experiências relacionadas à presença de textos literários na cena vêm se acumulando ao longo dos anos por meio de propostas que, inclusive, questionam a necessidade da adaptação desse material a uma estrutura dramatúrgica. É o caso dos espetáculos assinados por Aderbal Freire-Filho, denominados de romance-em-cena, nos quais o diretor recusa a transposição ao levar livros para o palco de forma integral, sem qualquer ajuste de linguagem ou corte. Aderbal comprova, desse modo, que o caráter teatral do trabalho decorre da construção da cena e não propriamente do texto verbal.
Desalinho, de Marcia Zanelatto, desembarca na cena evidenciando forte influência literária (a referência à poetisa Florbela Espanca é assumida). Não parece haver preocupação da parte da autora em disfarçar essa conexão, o que, em si, não é um problema. Mas a natureza literária se impõe de maneira pouco orgânica nos primeiros minutos, com os personagens enunciando estados emocionais. É como se as palavras demorassem a ganhar vida cênica. Esta sensação, porém, não minimiza o valor do texto de Zanelatto, que concebeu uma obra lacunar, que deixa espaços abertos para o espectador preencher, a partir do elo entre dois jovens, a interna de um hospício e seu irmão, e uma enfermeira. Entre os “tópicos” abordados pela autora, sobressai a repressão a uma intensa e genuína urgência em dar vazão aos impulsos, em expressar os sentimentos livremente.
O diretor Isaac Bernat não evita que o texto soe duro ao público, pelo menos nos momentos iniciais, mas realiza opções corajosas ao investir numa cena despojada, destituída de efeitos que muito provavelmente se constituiriam como excessivos diante do jorro poético do texto. A cenografia de Doris Rollenberg (composta por objetos reduzidos que sugerem desequilíbrio, instabilidade), a iluminação de Aurélio de Simoni (concentrada nos personagens e em suas travessias) e os figurinos (neutros) de Desiree Bastos revelam integração na produção de uma atmosfera asséptica, propositadamente pouco atraente sob o ponto de vista visual. O espaço da arena do Sesc Copacabana também é bem aproveitado, qualidade realçada pela direção de movimento de Marcelle Sampaio. A destacar ainda, a delicada trilha sonora de Alfredo Del-Penho e João Callado.
No elenco, Gabriel Vaz compensa certa linearidade com a busca de sintonia com a pureza do personagem. Carolina Ferman imprime sincera e bem dosada carga passional. Kelzy Ecard, dona de bela voz, demonstra domínio das transições emocionais da enfermeira, que, embrutecida, passa por processo de sensibilização. Mesmo apresentado na arena do Espaço Sesc (a montagem migrará para a Sede das Cias.), Desalinho é um trabalho de pequeno porte, intimista, que merece a atenção do espectador.
Rafael Canedo e Silvia Buarque em O Estranho Caso do Cachorro Morto (Foto: Cezar Moraes)
O Estranho Caso do Cachorro Morto, livro de Mark Haddon adaptado para o teatro por Simon Stephens e com tradução a cargo de Rodrigo Fonseca, é centrado em Christopher, adolescente autista que, ao investigar o assassinato do animal do título, acaba fazendo descobertas importantes e desestabilizadores em relação à sua vida, no que se refere à cumplicidade com o pai e à ausência da mãe. A partir de um fato específico, Haddon, portanto, descortina um panorama afetivo mais amplo.
Em cartaz no Teatro do Leblon – Sala Marília Pêra, a montagem fornece uma boa oportunidade ao ator encarregado do personagem principal e Rafael Canedo apresenta uma composição que, apesar de bastante realçada, não resulta cristalizada ou tão-somente artificial. Thelmo Fernandes também constrói o pai como uma figura próxima, crível, em seus instantes catárticos decorrentes de acontecimentos ocultados. E Silvia Buarque dosa com delicadeza a intensidade da mãe. Os demais atores têm chances reduzidas, alguns por surgirem em papéis excessivamente circunstanciais e outros pela maneira como despontam na adaptação, a exemplo da professora Siobhan, limitada a monótona leitura.
O modo questionável com que determinados personagens são incluídos esfria a encenação de Moacyr Góes, que se torna expositiva, sem muita pulsação quando a ação se desloca do vínculo passional entre pai e filho. A cenografia de Ana Santanna e Monica Martins, formada por objetos coloridos e geométricos, remete ao universo infantil e à conexão de Christopher com a matemática, mas não adquire propriamente função. O vídeo de Lucas Canavarro e Renan Brandão destaca um momento relevante na travessia de Christopher, sem, porém, ultrapassar o plano ilustrativo. Os figurinos de Joana Mendonça e Luiza Oliveira são adequados para o protagonista, mas não para Siobhan. A iluminação de Tomás Ribas sugere a jornada de Christopher, a trilha que percorre para acessar verdades até então interditadas.
É difícil localizar O Estranho Caso do Cachorro Morto dentro da carreira de encenador de Moacyr Góes, talvez porque o diretor esteja, nos últimos anos, tateando caminhos, oscilando entre certa retomada do vigor experimental de seus espetáculos da década de 1980 e o investimento num perfil de montagem de reverberação mais imediata junto ao público.
Claudia Raia e Jarbas Homem de Mello em Crazy for You (Foto: Caio Gallucci)
“Um musical da Broadway”. A frase estampada na capa do luxuoso programa de Crazy for You resume a vertente na qual se inscreve esse espetáculo dirigido por José Possi Neto. De fato, a intenção de apresentar ao público um trabalho que exibe know how, tanto no que se refere ao padrão de produção quanto às habilidades técnicas dos atores, fica evidente. Contudo, a montagem, que passa esta semana do Teatro Bradesco para o Vivo Rio, não tem sabor importado, como ocasionalmente ocorre com musicais estrangeiros que desembarcam em palcos brasileiros munidos de exigências contratuais que impedem – ou, pelo menos, limitam – uma apropriação nacional. A sensação de certa familiaridade decorre, em especial, do investimento numa versão brasileira (a cargo de Miguel Falabella) para as músicas de George e Ira Gershwin, da conhecida e expansiva personalidade interpretativa da atriz Claudia Raia e da provável sintonia artística entre integrantes da equipe que trabalharam juntos antes no musical Cabaret.
O enredo de Crazy for You repousa sobre um jogo de contrastes: Bobby Child anseia virar dançarino, mas, com dificuldade para alavancar a carreira em Nova York, vê-se cada vez mais pressionado para assumir um futuro que não deseja cuidando dos negócios da família e firmando vínculo com a mimada Irene. Enviado para o interior do estado do Nevada com o intuito de cobrar uma dívida referente a um teatro local, ele se apaixona pela extrovertida Polly. Ambos, então, somam esforços para salvar o teatro da ruína. No entanto, até que o objetivo seja alcançado, os personagens se envolvem em diversas peripécias. Homenagem ao teatro, Crazy for You opõe a atmosfera cosmopolita de Nova York à paisagem do interior dos Estados Unidos que parece estacionada no tempo, os comedidos ou aristocráticos personagens da cidade grande aos autênticos e nada polidos da cidade pequena. O texto de Ken Ludwig não traz propriamente ingredientes novos, mas compensa a previsibilidade com fluência e simpatia. Pesa apenas a longa duração (quase três horas), característica de boa parte dos musicais suntuosos. As canções (direção musical de Marconi Araújo) mais sublinham os estados emocionais dos personagens do que ajudam a história avançar.
A montagem de Crazy for You faz jus ao esperado selo de qualidade de uma superprodução musical. A cenografia de Duda Arruk evoca, de maneira estilizada, a efervescência da Rua 42, de Nova York, por meio de fachada de teatro e de letreiros luminosos e a aridez do interior do Nevada através de espaços internos (do hotel e do teatro decadente) e externos, suspendendo, porém, as reconstituições dos ambientes nos instantes românticos. As coreografias (de Jeff Whiting/Angelique Ilo) injetam pulsação na cena, principalmente no que diz respeito ao número vibrante que encerra o primeiro ato, com bom aproveitamento do sapateado. Os figurinos de Fabio Namatame realçam as diferenças entre os moradores do interior e da cidade grande. No elenco, Claudia Raia e Jarbas Homem de Mello interpretam os protagonistas: ela, que vem dedicando sua carreira teatral ao musical de grande porte, comprova intimidade com o gênero e apresenta uma atuação de pinceladas largas – sem espaço para sutilezas, ainda que eficiente e carismática –, enquanto ele demonstra domínio técnico e torna o atrapalhado e bem-intencionado Bobby um personagem empático. Entre os coadjuvantes sobressai, com bom timing, Liane Maya nos papéis de Lottie e Patricia Fodor.
A determinação em oferecer ao público brasileiro musicais com o padrão da Broadway, realizados com a finalidade de destacar conquistas técnicas, pode levar a resultados um tanto artificiais e despersonalizados. Felizmente, não é o que acontece com Crazy for You, mas cabe sempre prestar atenção para não incorrer nessa armadilha.
Débora Falabella e Yara de Novaes em Contrações (Foto: Guto Muniz)
O público carioca está tendo a oportunidade de entrar em contato com a dramaturgia do inglês Mike Bartlett por meio de duas montagens, Cock – Briga de Galo, em cartaz no Teatro Poeira, e Contrações, em temporada no Teatro III do Centro Cultural Banco do Brasil. A partir desses dois textos, dados gerais, tanto no âmbito estrutural quanto no temático, sobressaem logo de início: na primeira esfera, a tendência a priorizar frases curtas e poucos personagens; na segunda, o destaque ao aumento da pressão sobre um personagem, que faz com que a ação evolua rumo a um clímax.
Em Cock – Briga de Galo, um rapaz hesita entre a retomada do relacionamento com o namorado – opção que representa a acomodação, apesar de a consciência do apego ao conhecido suscitar incômodo – e o comprometimento recente com uma moça – símbolo do eventual risco a uma desestabilização. Em Contrações, a funcionária de uma grande empresa é levada a descortinar a sua intimidade diante da gerente, dedicada a seguir à risca os mecanismos de controle da corporação.
Enquanto Cock fecha o foco em torno de um conflito pessoal do protagonista, que precisa tomar uma decisão intransferível, Contrações não expõe uma dúvida da personagem, mas sua derrocada em virtude da perda da privacidade a partir da imposição de regras opressivas de vigilância. No primeiro texto, as circunstâncias políticas, sociais e econômicas do meio exterior não reverberam de modo marcante nos personagens; no segundo, o fantasma do desemprego, da falta de perspectiva profissional num panorama agressivo, impulsiona a funcionária na direção das atitudes mais absurdas. Seja como for, os personagens de Bartlett tendem a sucumbir diante da pressão do mundo, interno ou externo. Eles se encontram em busca ou em crise com a própria identidade, questão espelhada na identificação de cada um – ou justamente na abreviação ou inexistência.
Em Cock, o único personagem com nome é John, o rapaz que oscila entre o antigo namorado e a nova relação com uma mulher. Ambos são identificados por iniciais – respectivamente, M e W –, assim como F, pai de M. Esta medida não decorre de uma tentativa de assinalar a falta de personalidade dos três, mas de ressaltar que toda a ação gira em torno da necessidade de John chegar a uma decisão e assumi-la. Em Contrações, a funcionária possui um nome, Emma, ao contrário da gerente, que não parece ter vida própria para além do cotidiano na empresa.
Centradas em embates crescentes, as peças, porém, têm construções distintas. Em Cock, o autor apresenta ao espectador a situação-base (John já dividido entre M e W) para, então, mostrar o vínculo com ela. Boa parte das cenas é constituída pelo embate entre dois personagens (não por acaso, as cenas são emolduradas por som de ringue). A inclusão de mais personagens numa mesma passagem, que acontece à medida que o espetáculo avança, gera aumento de tensão. Em Contrações, existem apenas duas personagens, do começo ao fim, que se encontram ao longo de diversas reuniões realizadas em curtos espaços de tempo, mencionados, mas suprimidos, como se tivessem sido montadas numa sucessão ininterrupta.
Felipe Lima, Debora Lamm e Marcio Machado em Cock – Briga de Galo (Foto: Renato Mangolin)
Em diferentes graus, as diretoras – Inez Viana, de Cock, e Grace Passô, de Contrações – obedecem e operam sobre as rigorosas estruturas dos textos de Bartlett. Inez Viana segue a determinação do autor, no que se refere à ausência de elementos cenográficos (lembrando que a ausência não deixa de ser uma proposta cenográfica). Uma característica que, inclusive, se aproxima da sua personalidade como diretora, a julgar pelo palco quase destituído de adereços de Nem mesmo todo o Oceano e pela exatidão na escolha dos elementos em As Conchambranças de Quaderna. Em Cock, Flavio Graff responde pela concepção espacial em que o público, distribuído em arena, envolve a cena, que se torna mais opressiva devido à luz rebaixada (iluminação de Renato Machado). Grace Passô realça a artificialidade do contrato de relação imposto pela gerente através da exposição da construção da cena: a trilha sonora (de Dr. Morris) é produzida diante da plateia e os sons potencializam o não-dito.
Grace problematiza, em Contrações, o realismo da configuração espacial (a cenografia de André Cortez reconstitui o clima impessoal da sala de uma corporação), seja por meio da presença da equipe no palco, seja do rompimento da parede da sala em instante catártico, no qual Emma cobre os braços de terra. A situação, apesar de atada a uma circunstância concreta da peça, remete a Amores Surdos, espetáculo que contava com dramaturgia de Grace, que ainda estava em cena como atriz. A diretora reitera a crescente anulação de Emma através da postura cada vez mais curvada da atriz Débora Falabella. E sublinha a atmosfera asséptica da corporação – onde Emma, em sua escalada profissional, atravessa jornada trágica até se assemelhar à gerente e incorporar a ideologia da empresa – por meio de aumento da fumaça que confirma progressiva queda na temperatura propiciada pelo ar-refrigerado. Os figurinos também seguem as indicações (devidamente apropriadas) dos textos. Em Cock, Júlia Marini realça os perfis dos personagens, com criação questionável para M. Em Contrações, André Cortez aproxima (as estampas dos vestidos) e, ao mesmo tempo, distancia as personagens através dos trajes, mais joviais para Emma, mais formais para a gerente, assinalando, no caso desta última, sua posição de poder.
Os personagens ganham contornos bem perceptíveis dos atores, que apresentam rendimento mais irregular em Cock do que em Contrações. Na primeira montagem, Felipe Lima procura reagir às contracenas e imprime entonação “cantada”, característica que vem se tornando sua marca como ator. Marcio Machado, mesmo projetando a insegurança do personagem através do sarcasmo e de sinais físicos (mãos trêmulas), incorre em exageros que explicitam certo descontrole na administração de seus recursos interpretativos. Débora Lamm demonstra admirável organicidade na transição entre estados emocionais e emprego preciso da palavra. Hélio Ribeiro frisa a inconveniência do pai. Em Contrações, espetáculo do Grupo 3 de Teatro, Yara de Novaes e Débora Falabella formam uma dupla equilibrada, ainda que a primeira revele uma atuação particularmente expressiva. Dona de porte impositivo e autoridade vocal, Yara valoriza nuances da personagem (um momento de irritação, outro de quase emoção), enquanto que o bom trabalho de Débora fica, em parte, condicionado ao encaminhamento linear da personagem dentro do texto. Cock e Contrações são montagens que merecem a atenção do público do Rio de Janeiro.
Tato Gabus Mendes , Frank Borges, Antonia Frering e Giselle Batista em Relações Aparentes (Foto: Paula Kossatz)
Uma montagem como a de Relações Aparentes ocupa uma lacuna na cena do Rio de Janeiro, no que se refere à quase ausência de espetáculos de mercado dotados de um determinado acabamento em termos produção que não sejam filiados à corrente do musical. Supre, parcialmente, um espaço deixado vago no chamado teatro comercial, que, nos últimos tempos, ficou restrito a espetáculos de humor descartável e estrutura funcional, destituídos de aparatos que atrapalhem a alta rotatividade das salas.
Nessa comédia, o dramaturgo inglês Alan Ayckbourn aborda os problemas de comunicação no convívio entre dois casais de faixas etárias distintas, tanto por mentiras presentes no relacionamento quanto pela dificuldade de escutar e perceber o que é dito. Falta transparência aos dois casais, mas com diferenças: no casal mais velho, Philip e Sheila, tomado por cotidiano mais desgastado, o homem oculta da mulher um vínculo; já no mais jovem, composto pelos namorados Greg e Ginny, é a mulher que esconde algo, o que, princípios éticos à parte, parece sinalizar um processo de autonomia feminina na Londres da década de 1960, época delimitada pelo autor e adequadamente mantida nessa montagem.
A verdade vai sendo apresentada, aos poucos, ao público, que passa a se divertir diante dos diversos mal entendidos que se estabelecem nas relações entre os personagens. Ayckbourn demonstra habilidade no aproveitamento cômico de uma situação-base. A direção conjunta de Ary Coslov e Edson Fieschi não se impõe sobre o texto. Ambos valorizam a palavra de Ayckbourn, investem no jogo entre os atores e imprimem um padrão de qualidade à produção, a julgar pela cenografia de Marcos Flaksman – que utiliza as dimensões do palco do Teatro Ginástico para a ambientação do quarto do casal jovem e o aconchegante jardim do casal mais velho, recorrendo também ao recurso do telão pintado como pano de fundo – e pelos figurinos de Marília Carneiro – precisos no desenho dos perfis e das personalidades dos personagens e na escolha das cores. A iluminação de Maneco Quinderé é aberta como convém à comédia e a trilha sonora de Ary Coslov traz à tona o período em que a história transcorre.
Um texto como Relações Aparentes exige entrosamento do elenco e afinação com o registro de humor. Por meio de acento cômico, Frank Borges tira partido, com bom timing e uma dose de exagero, da ingenuidade de Greg. Mesmo sem estampar atuação marcante, Giselle Batista interpreta Ginny com certa desenvoltura. Tato Gabus Mendes busca a medida no jogo proposto pelo autor e confere vigor a Philip. Antonia Frering tenta encontrar variações para Sheila, mas não supera o tom mecânico. Talvez o espaço que a encenação preencha no panorama atual seja mais relevante do que o resultado alcançado. Esta eventual discrepância, porém, não anula os méritos do trabalho.