Isio Ghelman, Pedro Neshling e Paula Burlamaquy em A Estufa (Foto: Arthur Vianna)
Ary Coslov vem se dedicando à direção de montagens realizadas a partir de peças de Harold Pinter, a exemplo das encenações de Traições e Pinteresco. A Estufa simboliza um novo capítulo em sua investigação da obra de Pinter. Como de hábito na dramaturgia do autor inglês, explicações são suprimidas (recurso que estimula a imaginação do espectador), mesmo que essa peça traga elementos mais concretos: a presença de uma trama mais evidenciada, disposta em ambiente algo macabro e envolta em teor político. A intimidade com o universo de Pinter levou Coslov a também assinar a tradução do texto, em parceria com Isio Ghelman.
A montagem, atualmente em cartaz na Casa de Cultura Laura Alvim, tem concepção cenográfica simples (a cargo do próprio Coslov), marcada pelo realce de uma certa crueza, a julgar pela imagem do palco descarnado, exposto em sua estrutura. Nos figurinos (de Biza Vianna) imperam cores neutras, sóbrias. A iluminação (de Aurélio de Simoni) valoriza a expressividade dos atores, propondo gradações interessantes ao longo da apresentação. Chama atenção ainda o trabalho de preparação corporal do elenco, não creditado no programa.
Em relação ao registro interpretativo, pode-se perceber uma tendência à exacerbação, caminho perigoso na medida em que coloca o ator diante do risco do estrangulamento (no sentido de não ser mais possível evoluir em termos de tonalidade). Esta questão desponta na atuação de Mario Borges, mas o ator demonstra apreciável controle técnico que o permite dominar essa opção. Seja como for, o principal destaque do elenco é Isio Ghelman, bastante preciso na contenção.
Cena de Édipo, encenação da Companhia do Chapitô (Foto: Renato Mangolin)
Encenação da companhia portuguesa Chapitô que retornou ao Rio de Janeiro para pouquíssimas apresentações, na Caixa Cultural, encerradas no último domingo, Édipo está fundada na crença de que o teatro é uma manifestação artística que não necessita de muitos recursos para acontecer. Assinada por John Mowat, a montagem faz uma defesa de um teatro essencial, evidenciada na ausência de elementos cenográficos, nos figurinos despojados e na concentração absoluta nos trabalhos dos atores.
A tragédia de Sófocles se transforma em comédia devido ao registro interpretativo do elenco, composto por Jorge Cruz, Marta Cerqueira e Tiago Viegas, que se colocam dentro das situações propostas, ao mesmo tempo em que comentam, de modo bem humorado, os próprios procedimentos de atuação. O resultado reverbera imediatamente nos espectadores, que se divertem – ao invés de se distanciarem – diante da exposição da mecânica do jogo, a exemplo dos instantes em que os atores informam que mudaram de personagens. Vale destacar a cena do nascimento de Édipo.
A montagem segue uma determinada vertente do teatro contemporâneo que se localiza na contramão do aparato multimídia e de todo o fascínio tecnológico. Valoriza o que, de certa maneira, passou a ser considerado como algo obsoleto: o ato de contar uma história. Não há, cabe ressaltar, uma restrição implícita à parcela da cena atual que não é voltada para a transmissão de um dado enredo ao público. Também não significa que o grupo se debruce sobre a palavra, tendo em vista que a intenção aqui é bem mais a de estabelecer com a plateia uma relação coloquial do que realçar a qualidade poética do material textual original. Seja como for, no caso de Édipo, a história vem à tona por meio do trabalho físico vigoroso, mas não obrigatoriamente virtuosístico, dos atores.
Yara de Cunto em Ato sem Palavras 1 (Foto: Diego Bresani)
BRASÍLIA – Os irmãos Adriano e Fernando Guimarães vêm, ao longo do tempo, se debruçando sobre a obra de Samuel Beckett – particularmente, sobre os textos curtos do autor irlandês –, a julgar pelos projetos de Felizes para Sempre, Não ficamos muito Tempo… Juntos e Todos os que Caem. Em cartaz em Brasília, Sopro representa uma continuidade da investigação promovida por ambos, não “só” no sentido de trazer à tona material pouco difundido de Beckett como, principalmente, no que diz respeito às apropriações dos textos em trabalhos que se aproximam da instalação cênica, do campo das artes plásticas.
Como nas iniciativas anteriores, Adriano e Fernando Guimarães voltam a lançar versões próprias para os textos de Beckett, perspectiva mais destacada em Ato sem Palavras 1 do que em Passos – as duas peças que, traduzidas por Barbara Heliodora e Fábio de Souza Andrade, integram Sopro. Em ambas há presenças ausentes imperativas: no primeiro caso, a mãe de May, personagem escutada, mas nunca vista pelo público; no segundo, de uma invisível instância superior que controla as ações da personagem. Se em Passos sobressai a estrutura do texto (por meio do trânsito por diferentes formas – diálogo, descrição, narração), em Ato sem Palavras 1 a imagem é valorizada. Nessa última peça, Adriano e Fernando Guimarães se afastam da circunstância original, do espaço desértico determinado por Beckett, para propor uma diversa – a de uma idosa tentando tomar café da manhã em meio a um grande vendaval. Os diretores mantêm inalterada a questão da impotência, mesmo que não necessariamente diante da morte.
Adriano e Fernando Guimarães também assinam a cenografia, realçando a autoria sobre o projeto, composta, em Passos, por um tablado de madeira clara, elemento essencial para dimensionar a importância dos passos de May e, em Ato sem Palavras 1, por mesa, conjunto de louças e enorme ventilador. Há ainda a sugestiva porta entreaberta em Passos, sublinhando a “presença” da mãe de May, e a tela transparente onde são exibidas informações sobre as peças. A iluminação de Dalton Camargos imprime gradações sutis. Sopro reúne duas atrizes em cena: Yara de Cunto e Liliane Rovaris. Em Passos, Rovaris assume sonoridade algo melancólica, propositadamente linear, em atuação que não busca o resultado de efeito. Em Ato sem Palavras 1, De Cunto – que marca presença na peça anterior através de voz em off – se concentra na realização minuciosa da tarefa proposta pelos diretores, evidenciando esforço em vencer as etapas do desafio físico.
Efeito de foto: os atores não aparecem em cena em O que você vai ver (Foto: Carlos Cabéra)
A realização de O que você vai ver – apropriação dramatúrgica de Rodrigo Nogueira para peça radiofônica de Samuel Beckett – traz à tona um oportuno debate centrado no questionamento da sobrevivência do ato teatral diante da ausência do ator em cena. Os atores se encontram no teatro, mas não no palco. O único registro que há da presença deles é a voz; os atores leem o texto nos bastidores e o público escuta frente, inicialmente, à cortina fechada. Ainda que os atores não surjam diante da plateia em nenhum momento (em que medida este dado inviabiliza a existência de teatro?), fica preservada uma das características normalmente atribuídas a essa manifestação artística: o de acontecimento ao vivo diante do público.
Como no rádio, os atores de O que você vai ver assumem as funções de dubladores que, devido à falta de imagens, procuram estimular, através de suas vozes, a imaginação do espectador. O objetivo é levar cada espectador/ouvinte a criar suas próprias imagens. Em determinado momento, a cortina é aberta e o palco aparece vazio. Um pouco mais adiante, elementos cenográficos (cadeiras, malas) que sugerem ambientação de estação de trem são inseridos (cenário de Elsa Romero). Há também uma proposta de luz (de Wagner Freire) para a cena. “Apenas” os atores não surgem em meio a essa concepção. Entretanto, eles se fazem particularmente presentes em certos instantes, nos quais evidenciam estarem vendo os espectadores, ao contrário destes, que têm acesso interditado aos atores. A experiência de O que você vai ver (que reúne, no Teatro Ipanema, integrantes das companhias dos Atores e Pequena Orquestra) lembra, portanto, que os atores exercem posição mais poderosa que o público – nesse caso, retirado de uma apreciação passiva, confortável.
Inez Viana sustenta a aridez intencionada (durante alguns minutos o teatro permanece na penumbra, com a luz direcionada para as cortinas fechadas) e, ao mesmo tempo, dinamiza a cena a partir do instante em que objetos despontam no palco. É possível reconhecer, pelo menos, um de seus procedimentos anteriores – a utilização de biombos móveis para inserir elementos, empregado na montagem de As Conchambranças de Quaderna. Mas o que torna O que você vai ver mais instigante como proposta do que como resultado é a perceptível dificuldade dos atores (César Augusto, Fabricio Belzoff, Joana Lerner, Marcelo Valle, Michel Blois, Nanda Félix e Rodrigo Nogueira) na prática da dublagem. As composições vocais soam apressadas, como que limitadas a falsetes. Seja como for, o trabalho realça bem-vinda inquietação de seus realizadores.
Zécarlos Machado em Brincando com Sanduíche (Foto: Daniel Volpi)
O Grupo Tapa ocupa, no panorama teatral, um lugar específico, tendo em vista que segue norteado pela construção de um repertório consistente numa época em que o apego à dramaturgia parece ter se dissolvido em parte, pelo menos em comparação com a cena de décadas anteriores. Mas a conexão da companhia com o chamado teatro de texto não implica em abordagens museológicas, limitadas ao objetivo de transmitir um enredo com clareza ao público. À frente do Tapa, Eduardo Tolentino de Araújo valoriza o trabalho dos atores e lança leituras propositivas acerca das peças encenadas.
Atualmente, a plateia carioca pode assistir (apenas até o próximo domingo) a dois dos cinco monólogos de Alan Bennett, escritos para a BBC de Londres, montados pelo Grupo Tapa dentro do projeto Retratos Falantes: Fritas no Açúcar (traduzido por Clara Carvalho) e Brincando de Sanduíche (por Augusto Cesar). É possível notar elos entre os dois textos, tanto no que se refere à “temática” – a repressão sexual e a fronteira entre a prática da sexualidade e a ética – quanto a dados periféricos – o preconceito contra indianos.
Brian Penido Ross em Fritas no Açúcar (Foto: Flávio Moraes)
O diretor Eduardo Tolentino de Araújo confere o mesmo tratamento aos textos, encenados como oportunos veículos para atores – Brian Penido Ross e Zécarlos Machado, ambos com longa história dentro do Tapa. Brian Penido opta por composição mais marcada, principalmente na evocação dos personagens invisíveis mencionados por Graham, que adquiriu dependência em relação à mãe, com quem continua morando. Eventuais exageros, porém, são compensados diante da percepção de que o traço caricatural desses personagens mencionados corresponde ao modo como ficaram internalizados em Graham. Zécarlos Machado adota registro um pouco mais sutil para interpretar Wilfred, que esconde um segredo por trás da aparência de homem pacato.
A determinação em concentrar o foco em torno dos atores é evidente numa montagem que se vale de elementos cenográficos reduzidos ao necessário; de figurinos (de Lola Tolentino) simples que potencializam os perfis dos personagens; e de iluminação (de Nelson Ferreira) com gradações precisas que priorizam a penumbra em detrimento da luz aberta. Retratos Falantes é uma proposta despojada (o que, em si, não é um demérito), levando-se em conta o padrão de encenação firmado pelo Grupo Tapa no decorrer dos anos, mas reúne características realçadas no percurso da companhia: o destaque ao texto e a atenção destinada ao ator.
Paula Spinelli, Nathalia Timberg e Juliana Galdino em Tríptico Samuel Beckett (Foto: Daniel Seabra)
No Rio de Janeiro, Roberto Alvim se notabilizou como importante incentivador da nova dramaturgia brasileira. A mudança para São Paulo, onde fundou sua companhia, a Club Noir, fez com que seu trabalho ganhasse inegável densidade. Alvim seguiu destacando autores pouco difundidos no Brasil e passou a se apropriar de textos em encenações marcadas por assinatura vigorosa. O diretor vem investindo em montagens sintéticas (não costumam durar mais de uma hora), como se procurasse extrair o sumo das obras escolhidas ao invés de apresentá-las em suas integridades. As refinadas articulações realizadas a partir dos textos e a reduzida, mas precisa, iluminação são elementos que evidenciam uma proposta teatral que exige disponibilidade do espectador, confrontado com um ritmo consideravelmente menos acelerado que o vapt-vupt contemporâneo.
Não é diferente com Tríptico Samuel Beckett (composto por Para o Pior Avante, Companhia e Mal Visto Mal Dito, textos do autor irlandês), espetáculo austero, hierático, em cartaz no Mezanino do Espaço Sesc, que coloca o público diante do assombro da solidão e da morte, da impossibilidade de reter a passagem do tempo. A sensação exasperante é potencializada pela concepção da cena, impactante e destituída de ornamentos, a julgar pela imagem impositiva do grande esqueleto na cenografia de Roberto Alvim, pela iluminação repleta de gradações sutis, também a cargo de Alvim, pelos figurinos de Juliana Galdino, que sugerem neutralidade (as cores priorizadas) e provocam estranhamento, e pela trilha sonora de L.P. Daniel, rascante e melodiosa.
Entretanto, Roberto Alvim concentra muito da força de seus espetáculos nos trabalhos dos atores. Em Tríptico Samuel Beckett, as atuações resultam de minuciosa orquestração por parte da direção. Juliana Galdino emula emoções frisando que não constrói a personagem à base de emoção. Comprova a extensão de seus recursos deixando a técnica vocal à mostra, opção que se impõe como uma espécie de barreira entre o espectador e o texto fragmentado. Ainda assim, a humanidade transparece, em diversos instantes. Paula Spinelli sustenta expressão de permanente perplexidade e acentua o desenho infantil por meio da voz. Nathalia Timberg imprime tom propositadamente monocórdico, quebrado, em certa medida, por intensidade algo dramática que talvez aproxime seu trabalho de códigos de interpretação mais reconhecíveis. Contudo, a atriz faz com que o texto reverbere no espectador, bem mais que nos momentos anteriores da encenação.
Esta distinção decorre da intimidade de Nathalia Timberg, profissional de sólida formação artística, com o texto, de seu apreço pela palavra. E é gratificante ver a atriz, que nos últimos anos oscilou entre um repertório consistente – exercitado com o diretor Eduardo Tolentino de Araujo (A Importância de ser Fiel, Melanie Klein) – e peças mais comerciais (Letti e Lotte, Conduzindo Miss Daisy), assumindo riscos, tal como fez ao longo de sua carreira através de projetos (o Circo do Povo) e espetáculos avulsos (a exemplo de A Balada de Zerline, de Hermann Broch).
Françoise Forton e Aline Peixoto em Jazz do Coração (Foto: Guga Melgar)
Jazz do Coração, montagem intimista como convém ao espaço onde está sendo apresentada (a sala Rogerio Cardoso na Casa de Cultura Laura Alvim), não tem a intenção de biografar Ana Cristina Cesar, que “surge” no palco duplicada em diferentes fases, na juventude e na maturidade. A dramaturgia, a cargo do diretor Delson Antunes, traz à tona acontecimentos da vida da escritora, mas sem enveredar por um encadeamento de fatos cronológicos e sem perder de vista a palavra poética.
A encenação revela coerência na opção por criações artesanais em sintonia com o pequeno porte do projeto. O cenário de Jeane Terra conta com transparências que evocam cartas, malas envelhecidas e objetos que transportam o público para décadas passadas. Este trânsito também é favorecido pelos figurinos de Carol Lobato, que realçam a imagem espelhada de Ana Cristina Cesar, poetisa lembrada anteriormente em produções como Um Navio no Espaço, com Paulo José e Ana Kutner, e A Teus Pés, com Aracy Cardoso. A iluminação de Luis Paulo Nenen acentua a atmosfera nostálgica do trabalho.
As atrizes Françoise Forton e Aline Peixoto cantam as músicas de Pedro Luis, compostas para o espetáculo (além de eventuais canções conhecidas, como Sabiá), potencializando, dessa forma, o caráter pessoal da montagem. Há, porém, certo desnível entre as atrizes: enquanto a primeira tem presença segura, a segunda evidencia escassez de recursos interpretativos por meio de atuação bastante linear. Ainda assim, Delson Antunes, diretor que acumulou experiência à frente de espetáculos centrados em escritores brasileiros, faz com que Jazz do Coração desponte como uma realização simpática.
Dan Stulbach e Irene Ravache em Meu Deus!, em cartaz no Teatro dos Quatro (Foto: João Caldas)
A estrutura dramatúrgica de Meu Deus!, peça da israelense Anat Gov, pode ser notada pelo público, tendo em vista que o texto evidencia transições bem sinalizadas. De início, a autora aposta no humor a partir de uma situação nonsense: uma psicóloga, Ana, recebe Deus em seu consultório e, obviamente, não acredita. Há uma fase de convencimento, na qual Deus expõe fatos da vida dela que ninguém teria acesso direto. Daí em diante, a dramaturga passa a investir menos na comédia ao fazer com que os personagens travem uma relação analítica, na qual Deus revela sua vulnerabilidade e a psicóloga procura manter o controle, mesmo ameaçada por figura de poder tão absoluto. Em determinado momento, Anat Gov frisa uma mensagem referente à crise de valores no mundo contemporâneo.
Se como comédia a peça não prima exatamente pela originalidade ao buscar divertir a plateia a partir das perguntas tradicionais da psicóloga e das respostas inusitadas de Deus, o resultado se torna ainda menos promissor quando a autora tenta adensar a discussão. Além disso, Anat Gov não foi suficientemente cuidadosa no desenvolvimento da situação-base: soa estranho que a psicóloga demonstre tanta intimidade com o universo bíblico nos embates com Deus; e que a funcionária chamada para tomar conta do filho autista da psicóloga não o impeça de interromper com alguma constância a consulta. Talvez o filho, inclusive, pudesse ser mencionado, não necessariamente mostrado.
Em todo caso, Meu Deus! também desponta como veículo para atores. Este é o aspecto mais interessante da montagem em cartaz no Teatro dos Quatro graças à interpretação de Irene Ravache, uma atriz que se coloca admiravelmente dentro da circunstância proposta, que reage à escuta como se estivesse ouvindo pela primeira vez, sintonizada com o instante imediato da cena. Apresenta, assim, uma atuação repleta de frescor, sem vícios. Dan Stulbach caminha em sentido contrário ao registro realista de Irene Ravache, realçando a composição de Deus por meio de gestos e tom de voz que visam ao humor. Pedro Carvalho marca presença como o filho autista.
Elias Andreato não imprime uma assinatura mais perceptível na condução da montagem. Dirige sem ultrapassar o limite da correção, um padrão de profissionalismo reforçado pelo cenário de Antonio Ferreira Junior, os figurinos de Fause Haten (elegante para a psicóloga, de tonalidade neutra para Deus), a iluminação discreta de Wagner Freire e a trilha sonora de Jonatan Harold. Apesar da dramaturgia frágil, Meu Deus! tem no trabalho de Irene Ravache uma justificativa para ir ao teatro.
Suzana Faini em boa interpretação em Silêncio!, montagem em cartaz no Espaço Sesc, em Copacabana (Foto: Renato Mangolin)
A dramaturga Renata Mizrahi radiografa, em Silêncio!, uma trama familiar durante a reunião do shabat. Enquanto alguns impõem suas presenças de modo contundente, outros se deixam comandar. Esta estrutura viciada, prolongada há décadas, está prestes a ser rompida por meio da revelação de fatos até então ocultados.
A autora insere na peça o tema das judias polacas, sobre o qual tem se dedicado há certo tempo. A inclusão, porém, é realizada de maneira um tanto artificial. De dado momento em diante, o universo das polacas começa a ganhar surpreendente importância dentro da peça, destaque que Mizrahi procura “justificar” por meio das verdades interditadas que vem à tona no previsível desenlace catártico. E a consistência da pesquisa da autora não desponta, tendo em vista que a polêmica das polacas fica praticamente reduzida à oposição entre a revolta da matriarca e à defesa de uma das netas.
Além disso, Renata Mizrahi constrói personagens destituídos de complexidade. Cada um realça determinada característica preponderante. Há a matriarca autoritária, o patriarca passivo, a filha submissa, o genro opressor, a neta contestadora e a outra neta bem comportada. Como os personagens possuem perfis sem variação, o texto vai se tornando reiterativo no decorrer do espetáculo. O objetivo de Mizrahi parece residir na exposição da estagnação, da lógica de funcionamento cristalizada estabelecida entre os integrantes da família, mas os personagens precisariam se manter interessantes dentro da repetição – o que não acontece.
Essa limitação afeta – pelo menos, em parte – as possibilidades interpretativas do elenco. Ainda assim, Suzana Faini, Jitman Vibranovski, Karen Coelho, Gabriela Estevão, Alexandre Mofati, Verônica Reis e Vicente Coelho evidenciam, em graus distintos, fluência em cena, cabendo chamar atenção para a força de Faini, não só quando porta a palavra como nos instantes finais, nos quais permanece em silêncio.
Nello Marrese, responsável pela cenografia, utiliza elementos simples para criar a ambientação do jantar familiar. A iluminação Renato Machado esquenta a cena em certas passagens. Os figurinos de Bruno Perlatto acentuam o desenho caricatural dos personagens, na medida em que priorizam a definição em detrimento da sugestão, sem espaço para sutilezas.
Talvez os problemas detectados na peça, que encerra temporada no próximo domingo na arena do Sesc Copacabana, não tenham sido minimizados porque a autora acumulou a função de direção (em parceria com Priscila Vidca), diminuindo a chance de adquirir distanciamento em relação ao material original. Vale registrar, em todo caso, a disposição de Renata Mizrahi, que apresenta ao público um pouco do mundo judaico que conhece bem.
Cena de Nossa Cidade, montagem de Antunes Filho para a peça de Thornton Wilder (Foto: Emidio Luisi)
Antunes Filho é um encenador que não se limita a destacar um dado enredo por meio dos textos, teatrais ou literários, que decide montar. Não é diferente em Nossa Cidade, de Thornton Wilder, espetáculo que teve passagem meteórica pelo Rio de Janeiro (pouquíssimas apresentações no Sesc Ginástico). Logo no início, quando o narrador/diretor de cena desponta como homem confinado em cadeira de rodas em decorrência da guerra, Antunes sinaliza que aborda a peça a partir da contemporaneidade.
Obviamente atravessado por seu tempo, Antunes traça uma panorâmica da história americana através do texto de Wilder. Articula passado e presente, cidade e país, trajetórias individuais e rumos da nação. É como se o diretor se descolasse, em certa medida, da peça para olhá-la em perspectiva, como faz Emily ao reviver, depois de morta, um dia de sua vida e perguntar: “pode algum ser humano compreender a vida enquanto a vive?”
As operações propostas por Antunes acerca do material original são questionáveis. Evidenciam, contudo, inquietação por parte do diretor, que procura presentificar Nossa Cidade. Grover´s Corners, a pequena cidade onde a história se desenrola durante as duas primeiras décadas do século XX, parece cristalizada, imune às transformações do mundo, mas, apesar do ritmo quase estagnado, o tempo passa e traz mudanças. Impotentes, os personagens são irremediavelmente afetados pelos acontecimentos, seja no que se refere à instância privada (a morte de Emily no parto), seja à esfera pública (a morte de George durante a Primeira Guerra Mundial).
Se o projeto revela coerência em relação à carreira de Antunes Filho no que diz respeito às incisões dramatúrgicas, a escolha de uma peça como Nossa Cidade favorece outra vertente do teatro do diretor: o despojamento estético. Nos últimos anos, Antunes vem concentrando as atenções em torno do trabalho do ator, a julgar pelas montagens das tragédias gregas e, em especial, pelas cenas que compõem Prêt-à-Porter – estas apresentadas em meio à intencional escassez de recursos das salas de ensaio, assim como a montagem de Falecida Vapt-Vupt. Nossa Cidade não conta com criações visuais do porte dos troncos de árvores sem copas de Vereda da Salvação ou dos aquários de Gilgamesh, espetáculos que, realizados durante a parceria entre Antunes e o cenógrafo J.C. Serroni, porém, não foram norteados por concepções estéticas meramente exuberantes. Em todo caso, essa nova encenação segue o caminho da economia.
É uma montagem que concilia sobriedade (na contenção das marcações em cena de configuração algo expositiva, no controle técnico dos atores que dosam a intensidade de suas presenças) com singeleza (a exemplo das pequenas luzes que irrompem no céu enquanto Emily dança com o vestido). Os elementos que integram a cena (mesas e cadeiras) são notadamente simples, comprovando determinação do diretor em não preencher o palco com objetos supérfluos. O cenário (direção de arte de Hideki Matsuka) realça o desejo de assinalar o teatral, ao invés de ocultá-lo. No fundo da cena há uma cortina preta, como a de um teatro, e por trás dela surge um painel que evoca, por meio de cores fortes próprias a um desenho infantil, a pequena cidade. Este painel estilizado é exposto apenas através de fragmentos – recusa à inteireza que estimula a imaginação do espectador e reafirma a disposição em não mostrar além do necessário.
O registro buscado junto aos atores também não procura esconder a construção. Atores que fazem personagens distantes de suas faixas etárias não camuflam contrastes diante do público. Estágio possivelmente mais delicado do método interpretativo formulado por Antunes Filho, a voz sobressai nas atuações, como se não houvesse muita preocupação em torná-la orgânica. Entretanto, a sensação de estranheza é minimizada ao longo da apresentação.
Seja como for, Antunes conduz um conjunto harmônico, o que não impede de elogiar o trabalho de Leonardo Ventura como o diretor de cena. Em alguns momentos, os atores lidam com objetos imaginários e Antunes destaca, através de procedimentos como este, o acontecimento teatral em detrimento de uma relação ilusionista com o público. Se a dramaturgia já promove um entrelaçamento entre tempos diversos, entre vivos e mortos, o diretor se afasta ainda mais das balizas impostas pelo realismo.
Nossa Cidade é uma montagem seca, austera, que, na contramão da espetaculosidade, propõe uma utilização discreta de seus recursos – além da mencionada cenografia, os figurinos (de Camila Nuñez), em tons neutros, a iluminação suave (de Edson FM e Elton Ramos) e a trilha sonora (de Raul Teixeira) em apreciável tom menor.