Auê concorre em cinco categorias do Prêmio APTR (Foto: Divulgação)
O musical Auê lidera as indicações ao Prêmio APTR, que tem, como elementos diferenciais, a categoria de produção (concedida pelos próprios integrantes da associação) e a separação entre atores protagonistas e coadjuvantes.
Indicados:
Espetáculo – A Paz Perpétua, Auê, Gritos, Nós
Direção – Aderbal Freire-Filho (A Paz Perpétua), Artur Luanda Ribeiro e André Curti (Gritos), Duda Maia (Auê), Márcio Abreu (Nós)
Autor – Cláudia Mauro (A Vida Passou por Aqui), Felipe Vidal (Cabeça — Um Documentário Cênico), Fernando Marques (Se eu Fosse Iracema), Grace Passô (Vaga Carne)
Ator Protagonista – Kiko Mascarenhas (O Camareiro), Marcos Caruso (O Escândalo Philippe Dussaert), Otto Jr. (Amor em Dois Atos), Zécarlos Machado (Gata em Telhado de Zinco Quente)
Atriz Protagonista – Adassa Martins (Se eu Fosse Iracema), Cláudia Mauro (A Vida Passou por Aqui), Debora Bloch (Os Realistas), Julia Lund (Amor em Dois Atos), Laila Garin (Gota D’água [A Seco]), Suzana Faini (O Como e o Porquê)
Ator Coadjuvante – Ary França (Galileu Galilei), Gustavo Damasceno (Os Cadernos de Kindzu), Pedroca Monteiro (Sucesso), Stéphane Brodt (Os Cadernos de Kindzu)
Atriz Coadjuvante – Clara Carvalho (Anti-Nelson Rodrigues), Juliana Guimarães (Sucesso), Luciana Lopes (Os Cadernos de Kindzu), Lydia Del Picchia (Nós)
Cenografia – André Cortez (O Camareiro), Daniela Thomas e Camila Schmidt (Os Realistas), Fernando Mello da Costa e Estúdio Radiográfico (Céus), José Dias (Dorotéia), Márcio Medina (Galileu Galilei)
Figurino – Beth Filipecki e Renato Machado (O Camareiro), Carol Lobato (Cinderela), Kika Lopes (Auê), Luiza Fardin (Se eu Fosse Iracema), Lulu Areal (Dorotéia)
Iluminação – Jorge Farjalla, Patrícia Ferraz e José Dias (Dorotéia), Artur Luanda Ribeiro e Hugo Mercier (Gritos), Maneco Quinderé (O Como e o Porquê), Beto Bruel (Os Realistas)
Música – Alfredo Del-Penho e Beto Lemos (Auê), Luciano Moreira e Felipe Vidal (Cabeça — Um Documentário Cênico), Beto Lemos, Fernando Mota e Marcelo H (Gritos), Nando Duarte (Gilberto Gil, Aquele Abraço — O Musical), Stéphane Brodt (Os Cadernos de Kindzu)
Categoria especial – Wolf Maia (pela construção do Teatro Nathalia Timberg), Eduardo Rieche (pelo lançamento do livro Yara Amaral, a Operária do Teatro), Flávio Marinho (pelo lançamento do livro Teatro é o Melhor Programa), Cesar Augusto (pela multiplicidade de suas ações artísticas), Projeto Rio Diversidade
Produção – Auê, Gota D´água [A Seco], O escândalo Philippe Dussaert, Os Realistas
Gritos, encenação da Cia. Dos à Deux (Foto: Renato Mangolin)
O teatro apresentado no Rio de Janeiro ao longo de 2016 foi tomado por temporadas meteóricas, fator que dificultou a repercussão das encenações – por isso, voltadas a um público reduzido. O problema não está na realização de projetos específicos para plateias restritas – algo que pode evidenciar um desejo genuíno de estabelecer uma relação individualizada com o espectador –, mas na concentração da atividade teatral num círculo cada vez mais diminuto.
Aqueles que se dedicam a propostas investigativas, de cunho notadamente autoral, costumam permanecer em cartaz durante pouco tempo e enfrentam obstáculos para retornar ao circuito; já o teatro de mercado desponta com frequência decrescente. Em todo caso houve espetáculos representativos, mais no primeiro semestre do que no segundo e tanto de companhias quanto avulsos.
Além das montagens listadas abaixo, trabalhos em encenações diversas devem ser destacados. Em termos de atuação, as de Caco Ciocler em Caesar – Como Construir um Império, Bernardo Marinho em Os Sonhadores, Emilio de Mello e Debora Bloch em Os Realistas, Laila Garin em Gota D’Água (a Seco), Helena Varvaki em A Outra Casa, Denise Fraga em Galileu Galilei, Luciano Chirolli em Memórias de Adriano, Kiko Mascarenhas em O Camareiro, Grace Passô em Vaga Carne, Vilma Melo em Chica da Silva – O Musical, Julia Lund em Amor em 2 Atos, Marcos Caruso em O Escândalo Philippe Dussaert, Juliana Guimarães e Pedroca Monteiro em Sucesso e Ricardo Kosovski em Boa Noite, Professor. Entre as direções mais expressivas, as de Eduardo Wotzik em Estudo paraMissa para Clarice, Aderbal Freire-Filho em A Paz Perpétua e Adriana Schneider e Lucas Oradovschi em Cidade Correria. As dramaturgias de Jacy, assinada por Pablo Capistrano e Iracema Macedo (com colaboração de Henrique Fontes), Alice Mandou um Beijo, a cargo de Rodrigo Portella, e O Açougueiro, de autoria de Samuel Santos, merecem menção.
Também cabe elogiar as cenografias de Daniela Thomas e Camila Schmidt em Os Realistas, Adriano e Fernando Guimarães e Ismael Monticelli em Hamlet – Processo de Revelação, Rodrigo Portella em Alice Mandou um Beijo, André Cortez em Gota D’Água (a Seco), Aurora dos Campos em Os Sonhadores e Camila Rodrigues em Antes do Café; os figurinos de Lulu Areal em Doroteia, Kika Lopes em Gota D’Água (a Seco), Luiza Fardin em Se eu Fosse Iracema, Marcelo Olinto em Gilberto Gil – Aquele Abraço e Thanara Schönardie em Valsa nº6; as iluminações de Roberto Alvim em Caesar – Como Construir um Império, Tomás Ribas em Fatal, Rodrigo Belay em Os Sonhadores, Nadja Naira em Vaga Carne, Aline Santini em Chet Baker – Apenas um Sopro e Lucia Koch e Carolina Mendonça em Tragédia: uma Tragédia.
Houve ainda importantes contribuições, como os livros Teatro é o Melhor Programa, de Flavio Marinho, e Yara Amaral: a Operária do Teatro, de Eduardo Rieche, a idealização do projeto Que Tempos são Esses?, da Cia. Ensaio Aberto, composta por exposição, leituras dramatizadas, seminários e mostra de filmes marcando os 60 anos da morte de Bertolt Brecht, o recorte de espetáculos poloneses, a exibição de vídeos de encenações de Tadeusz Kantor e a realização de debates em ambiente universitário no Tempo Festival, a direção de movimento de Renato Vieira em Lili e a Rede Baixada em Cena, que reuniu 18 coletivos de 13 cidades da Baixada Fluminense, iniciativa relevante a julgar pela pouca circulação dos espetáculos e grupos. Vale registrar a inauguração de espaços teatrais – o Nathalia Timberg, acoplado à sala Nathalinha, o Cesgranrio e o Riachuelo – num momento em que tantos foram demolidos ou continuam fechados.
DESTAQUES:
CABEÇA (UM DOCUMENTÁRIO CÊNICO) – Musical do coletivo Complexo Duplo, com dramaturgia, assinada pelo diretor Felipe Vidal, centrada num diálogo entre passado e presente. O álbum Cabeça Dinossauro, dos Titãs, de 1986, é evocado sem que se perca de vista os dias de hoje. A integração entre os atores/músicos (Felipe Antello, Felipe Vidal, Guilherme Miranda, Gui Stutz, Leonardo Corajo, Lucas Gouvêa, Luciano Moreira e Sergio Medeiros) sobressai.
CAIS OU DA INDIFERENÇA DAS EMBARCAÇÕES – Montagem da Velha Companhia, dirigida por Kiko Marques (acumulando ainda as funções de autor e ator), que concilia as instâncias do dramático e do épico ao focar nas jornadas de personagens específicos – pertencentes a diferentes gerações que moram em Ilha Grande ou seguem vinculados a essa localidade depois de terem saído de lá – e, a partir das trajetórias deles, apresentar um breve panorama do Brasil ao longo de décadas do século XX.
O COMO E O PORQUÊ – Encenação elegante e sóbria de Paulo de Moraes para o texto da americana Sarah Treem sobre o conflito entre duas mulheres de gerações distintas que pertencem à mesma área. Suzana Faini comprova domínio na articulação entre pensamento e fala, convence sobre a intimidade da bióloga com o universo abordado e demonstra precisão nas transições propostas pela dramaturga. Na iluminação, Maneco Quinderé destaca os espaços de ausência.
ESSE VAZIO – O diretor Sergio Módena conseguiu apreciável equilíbrio interpretativo entre os atores Daniel Dias da Silva, Gustavo Falcão e Sávio Moll na encenação do texto do argentino Juan Pablo Gómez sobre o encontro de três amigos de infância no velório de um quarto.
GATA EM TELHADO DE ZINCO QUENTE – Eduardo Tolentino de Araujo indica possibilidades de leitura para o texto de Tennessee Williams a partir da proposta cenográfica de Ana Mara Abreu e Alexandre Toro e do figurino de Gloria Kalil para Maggie. O vestido encardido de Maggie e o esqueleto de uma cama e os espelhos embaçados que compõem o cenário explicitam (sem reiterar) o desgaste dos relacionamentos que atravessam a peça. No elenco, Zecarlos Machado frisa a rispidez de Paizão sem enveredar por linearidade redutora da humanidade do personagem.
GRITOS – André Curti e Artur Luanda Ribeiro dão continuidade e renovam a pesquisa que move a Cia. Dos à Deux, voltada para um teatro sem uso de palavras. Aqui, assinam um espetáculo político, mas nada panfletário, e colocam o espectador diante do desafio de ver demais (os atores por trás das máscaras) e, ao mesmo tempo, de menos (a iluminação, de Ribeiro e Hugo Mercier, propositadamente reduzida).
LEITE DERRAMADO – Roberto Alvim estabelece uma relação criativa com a obra original de Chico Buarque, procurando extrair um sumo, a partir de uma leitura autoral, ao invés de se limitar a descortinar um enredo diante do público. O diretor assina uma montagem rigorosa, valorizada pelo trabalho minucioso e contundente de Juliana Galdino como o centenário Eulálio D’Assumpção.
MYRNA SOU EU – Sob o pseudônimo de Myrna, Nelson Rodrigues assinou coluna no jornal Diário da Noite, em 1949. Nessa montagem de Elias Andreato, porém, Myrna transmite conselhos sentimentais num programa de rádio a partir da leitura de cartas enviadas pelos ouvintes. A interpretação de Nilton Bicudo revela domínio corporal e vocal. O ator não limita o trabalho à caracterização; ao contrário, apropria-se da feminilidade. Sem enveredar por linha apelativa, diverte o público graças a precisa noção de timing.
UM NOME PARA ROMEU E JULIETA – Dani Lossant realiza uma nova visita ao projeto encenado há dez anos dentro do ambiente universitário. Os atores (Diogo Liberano, Carolina Ferman, Andrêas Gatto, Daniel Chagas, Márcio Machado e Morena Cattoni) imprimem marcas de presença no espaço, cada vez mais poluído. Juntamente com a cenografia (da própria Lossant), os figurinos de Luci Vilanova exibem evidências de uso e contribuem para um visual nada asséptico. A destacar ainda, a direção de movimento de Nathalia Mello.
NÓS – A sobrevivência do Galpão ao longo de mais de três décadas coloca o grupo numa certa posição de resistência frente ao contexto da cena contemporânea, na medida em que as companhias de porte médio tendem a sucumbir diante dos obstáculos crescentes (fenômeno que já ocorreu com as grandes). A preparação de uma sopa simboliza o projeto conjunto, que, porém, não é executado harmoniosamente. O jogo de repetições contido na dramaturgia (a cargo do diretor Marcio Abreu e do ator Eduardo Moreira) evidencia o cansaço nas relações, fragilizadas por ânimos cada vez mais exaltados. No elenco, Teuda Baura concentra as atenções.
Cena de Leite Derramado, montagem de Roberto Alvim para o livro de Chico Buarque (Foto: Edson Kumasaka)
Nessa transposição do romance homônimo (Leite Derramado) de Chico Buarque para o palco, apresentada recentemente no Teatro Sesc Ginástico, o diretor Roberto Alvim percorre, por meio do protagonista, o aristocrata centenário Eulálio D’Assumpção, “um labirinto de 500 anos”. O personagem externa saudade do glamour do passado e perplexidade diante das transformações decorrentes da passagem do tempo (“Acabo de me lembrar que o casarão não existe mais”, “O jardim virou estacionamento da embaixada da Dinamarca”).
O apego a um período de pompa e a desconexão com o presente – características de Eulálio, que ficou reduzido a um “rosto na moldura dourada” – evocam a dramaturgia de Anton Tchekhov. Contudo, mais do que o contraste entre passado e presente, Buarque capta – e Alvim ressalta nessa sua versão cênica – a perpetuação do preconceito, da lógica da exclusão, questão que pode remeter, longinquamente, ao virulento cinema de Sergio Bianchi, em especial ao filme Quanto Vale ou é por Quilo? (2005). Trata-se de um discurso potente, mesmo que realçado com certa reiteração durante o espetáculo. De qualquer modo, Roberto Alvim estabelece uma relação criativa com a obra original, procurando extrair um sumo, a partir de uma leitura autoral, ao invés de se limitar a descortinar um enredo diante do público.
O diretor assina uma montagem rigorosa, valorizada pelo trabalho de Juliana Galdino. A atriz incorpora Eulálio, personagem que porta o acúmulo de seus descendentes. Mas a incorporação não deve ser entendida como ausência de técnica. Ao contrário, a técnica se manifesta nos primeiros momentos da atriz em cena, como se a construção não tivesse sido encoberta por completo, impressão, porém, que logo se desfaz. A atuação de Galdino, minuciosa desde a sua aparição inicial, se torna rapidamente orgânica. Caio D’aguilar, Diego Machado, Luís Fernando Pasquarelli, Marcelo Gritten, Nathalia Manocchio, Renato Forner e Taynã Marquezone evidenciam integração à proposta do espetáculo, centrado, em todo caso, no inegável domínio interpretativo de Galdino.
Como Galdino, Eulálio ocupa um lugar absoluto na cena. No começo da montagem, atores surgem com máscaras que parecem escafandros. Uma despersonalização que acentua a figura de Eulálio, apesar de, como os demais personagens, ele despontar mais como símbolo de uma determinada visão de mundo do que propriamente como uma individualidade. O protagonista traz à tona uma perspectiva histórica – mas nem didática, nem linear (“As pessoas vão se amontoando de qualquer jeito na vida da gente”) –, também sugerida na cenografia, a cargo do próprio Alvim, na qual os muros se impõem como uma sucessão de barreiras. A iluminação de Domingos Quintiliano oscila entre o glacial e o pulsante, destacando, no segundo caso, a continuidade de uma história escrita a sangue.
Marcos Caruso em O Escândalo Philippe Dussaert, montagem de Fernando Philbert em cartaz no Teatro Maison de France (Foto: Paula Kossatz)
Mesmo que pince um caso específico – o de um suposto pintor (o Philippe Dussaert do título) que se notabilizou na reprodução de paisagens de fundo de telas consagradas – e que tome cuidado de, em dado momento do texto, ressaltar que não tem a intenção de abordar a arte contemporânea como um todo, Jacques Mougenot realça questões abrangentes sobre a obra de arte nos dias de hoje (quem atribui o valor, como estabelecer critérios para legitimar ou não o trabalho).
O dramaturgo, quase inevitavelmente, traz à tona uma recorrente polêmica sobre arte abstrata, muitas vezes tratada como golpe por não fornecer uma decodificação imediata dos signos no habitual intuito de estimular a livre apropriação do espectador. Esse incentivo à autoria, porém, por mais saudável, não garante a qualidade da obra. E há trabalhos que ambicionam desestabilizar ou surpreender o espectador e se reduzem a um mero efeito de choque, ocasionalmente impulsionados pelo jogo de marketing, pelo interesse em criar e promover celebridades. No texto de Mougenot, o mencionado Dussaert desponta como símbolo de determinadas distorções. Não é, portanto, um caso isolado. O escândalo Philippe Dussaert parece associar, por meio de constante ironia, iniciativas singulares a um vazio artístico. Essa articulação tende a gerar uma valorização do oposto: de uma noção de arte mais calcada em bases concretas, palpáveis, menos pautada pelo que se costuma chamar de invencionices.
É preciso incluir Marcos Caruso, ator do monólogo dirigido por Fernando Philbert, nesse debate. Artista que transita por diversas funções – ator, dramaturgo, diretor –, Caruso construiu sólida trajetória dentro do teatro de mercado (termo, aqui, desvinculado de juízo de valor). Como autor assinou sucessos de bilheteria, em voos solos, a exemplo da peça recordista de público Trair e coçar é só começar, e em parceria com Jandira Martini, em textos como Porca miséria e Sua excelência, o candidato. Caruso é representante genuíno da comédia de costumes, gênero que, iniciado com Martins Pena, atravessa o teatro brasileiro. Menos frequente como diretor, firmou bem-sucedido percurso como ator, seja no teatro, seja na televisão. Apesar do texto de Mougenot, de origem francesa, não ter evidentemente sido escrito para Caruso, há uma conexão entre a peça – que, de certo modo, defende uma perspectiva de arte mais tradicional – e um artista inserido no mercado.
A encenação é complementada, ao final, com uma mensagem tradicional (qualquer mensagem, por si só, pode ser considerada como um mecanismo tradicional na relação com o público), um destaque a um sempre referido paradoxo do contato ator/espectador no teatro: o ator como aquele que mente com o máximo de verdade, convencendo a plateia de informações fictícias e estados emocionais que soam como próprios do intérprete, mas pertencem ao personagem. Vale lembrar que Bosco Brasil estruturou sua peça Novas diretrizes em tempos de paz sobre a capacidade do ator, por meio das suas ferramentas interpretativas e de sua cultura teatral (evoca o texto A vida é sonho, de Calderón de la Barca), fazer o espectador acreditar que está diante de um relato verídico e se emocionar. No texto de Brasil, um dos personagens assumia o lugar de ator e o outro, o de espectador. No de Mougenot, o ator solitário convence o público de que está relatando uma história que, de fato, aconteceu.
Para tanto, Caruso busca um registro de atuação invisível. O ator recebe os espectadores na entrada do teatro e, quando sobe ao palco para o espetáculo efetivamente começar, mantém o tom de conversa direta com a plateia, a quebra da quarta parede, a fala nada impostada, um estar em cena à-vontade que sustenta ao longo da sessão. O ator dá a impressão de se expressar em seu próprio nome, mas interpreta um personagem que explana, diante da plateia, o caso Philippe Dussaert. Ao público também é destinado um papel: o de espectador de uma palestra coloquial sobre Dussaert. Esse registro contrasta apenas nos breves instantes em que Caruso compõe uma suposta crítica de arte. Centrada no ator, a montagem demonstra investimento na economia de elementos cênicos, mas sem perder de vista a preocupação com uma dada concepção, a julgar pela escultura presente na cenografia de Natalia Lana e pela iluminação, ainda que vez por outra excessiva, de Vilmar Olos.
O escândalo Philippe Dussaert resgata um amplo debate – contido em Arte, peça de Yasmina Reza –, sem, contudo, levá-lo a avançar para além do lugar-comum, em que pese a segurança do autor no desenvolvimento de sua proposta dramatúrgica. Para avançar na discussão talvez seja necessário perceber que cabe analisar as obras separadamente e ceder às tentações de agrupá-las em blocos e de seguir apostando em contrapontos apressados – entre o abstrato e o concreto, o experimental e o mercado –, como se fosse preciso tomar um partido. Mas o espetáculo, bastante fluente, não tende a provocar incômodo no espectador. Se por um lado se pode fazer restrição à ausência de atrito que o universo temático deveria suscitar, por outro é um prazer assistir a Marcos Caruso em pleno domínio dos seus recursos interpretativos.
Grace Passô em Vaga Carne, trabalho contemplado em quatro categorias (Foto: Lucas Ávila)
Gritos, encenação que dá continuidade à pesquisa de linguagem da Cia. Dos à Deux, e Vaga Carne, texto e atuação de Grace Passô, lideram as indicações do Prêmio Cesgranrio referentes ao segundo semestre de 2016. Mencionado em três categorias, o espetáculo 5 X Comédia, assinado por Hamilton Vaz Pereira e Monique Gardenberg. Com duas indicações, Os Cadernos de Kindzu, da Cia. Amok, Amor em 2 Atos, dirigido por Luiz Felipe Reis, Cabeça – Um Documentário Cênico, assinado por Felipe Vidal, A Vida passou por Aqui, peça de Claudia Mauro, também presente em cena, Boa Noite, Professor, de Lionel Fischer e Julia Stockler, e Imagina esse Palco que se Mexe, montagem de Moacir Chaves. Também foram lembrados com uma indicação O Escândalo Philippe Dussaert, Ordinary Days, Demônios, A Invenção do Amor, Tran_se e Céus.
Indicados:
Espetáculo – Os Cadernos de Kindzu, Gritos, Vaga Carne
Direção – Ana Teixeira e Stephane Brodt (Os Cadernos de Kindzu), André Curti e Artur Luanda Ribeiro (Gritos), Luiz Felipe Reis (Amor em 2 Atos)
Autor – Felipe Vidal (Cabeça – Um Documentário Cênico), Grace Passô (Vaga Carne), Claudia Mauro (A Vida passou por Aqui)
Atriz – Claudia Mauro (A Vida passou por Aqui), Fabiula Nascimento (5 X Comédia), Grace Passô (Vaga Carne)
Ator – Bruno Mazzeo (5 X Comédia), Marcos Caruso (O Escândalo Philippe Dussaert), Otto Jr. (Amor em 2 Atos)
Atriz em Musical – Vilma Melo (Chica da Silva, o Musical)
Ator em Musical – Hugo Bonemer (Ordinary Days)
Cenografia – André Curti e Artur Luanda Ribeiro (Gritos), Bel LoboeBruce Gomlevski (Demônios), José Dias (Boa Noite, Professor)
Figurino – Cassio Brasil (5 X Comédia), Marcelo Olinto (A Invenção do Amor), Paula Stroher (Tran_se)
Iluminação – Artur Luanda Ribeiro e Hugo Mercier (Gritos), Nadja Naira (Vaga Carne), Paulo César Medeiros (Imagina esse Palco que se Mexe)
Direção Musical – Alexandre Elias (Chica da Silva, o Musical), Luciano Moreira e Felipe Vidal (Cabeça – Um Documentário Cênico)
Categoria Especial – Eduardo Rieche (pela autoria do livro Yara Amaral – A Operária do Teatro), Grupo Nós do Morro (pelos 30 anos de atividade), Tato Taborda (pelas criações musicais dos espetáculos Boa Noite, Professor, Céus e Imagina esse Palco que se Mexe)
Montagem da Cia. Amok, conduzida por Ana Teixeira e Stephane Brodt, Os Cadernos de Kindzu ganhou três indicações ao Prêmio Shell. Entre os contemplados em meio às produções do segundo semestre de 2016 também estão Cabeça – Um Documentário Cênico, musical do Complexo Duplo, dirigido por Felipe Vidal, Gritos, da Cia. Dos à Deux, e Tran_se, solo com Joelson Gusson concebido em parceria com Daniela Amorim.
Indicados:
Autor – Felipe Vidal (Cabeça – Um Documentário Cênico), Grace Passô (Vaga Carne)
Direção – Aderbal Freire-Filho (A Paz Perpétua), Ana Teixeira e Stephane Brodt (Os Cadernos de Kindzu), André Curti e Arthur Luanda Ribeiro (Gritos)
Ator – Joelson Gusson (Tran_se), Marcos Caruso (O Escândalo Phillipe Dussaert), Thiago Catarino (Os Cadernos de Kindzu)
Atriz – Fernanda Nobre (O Corpo da Mulher como Campo de Batalha), Vilma Melo (Chica da Silva, o Musical)
Cenografia – André Cortez (Noés), André Curti e Arthur Luanda Ribeiro (Gritos)
Figurino – Marcelo Olinto (A Invenção do Amor), Paula Stroher (Tran_se)
Iluminação – Paulo César Medeiros (Imagina esse Palco que se Mexe), Renato Machado (Uma Praça entre Dois Prédios, Próximo de um Chaveiro, Grafites na Parede e uma Árvore)
Música – Felipe Vidal e Luciano Moreira (direção musical de Cabeça –Um Documentário Cênico), Stephan Brodt e atores (música de Os Cadernos de Kindzu)
Inovação – Grupo de Teatro da Laje (pela criação da Escola de Teatro da Laje e residência artística na Arena Carioca Dricó em 2016), Projeto Ocupação Rio Diversidade (por fomentar a discussão em torno da identidade de gênero através do teatro), Rede Baixada em Cena (pelo movimento de discutir a criação estética e o poder de mobilização de 18 coletivos de 13 cidades da Baixada Fluminense)
Alexandre Guimarães em O Açougueiro, montagem em cartaz no Teatro Poeira (Foto: Lucas Emanuel)
O empenho em extrair teatralidade de elementos reduzidos fica estampado na montagem de O Açougueiro, atualmente em cartaz no Teatro Poeira. Um único ator (Alexandre Guimarães) se desdobra em alguns personagens e o diretor (Samuel Santos), também responsável pelo texto, propõe atmosfera por meio de cena despojada.
Alexandre Guimarães interpreta o protagonista e os coadjuvantes de uma história centrada em menino que desde cedo sonha se tornar açougueiro e realiza o desejo na juventude, quando se casa com prostituta discriminada pelos habitantes da cidade onde vive. A carne é a espinha dorsal da peça (de diferentes formas, os ofícios do personagem principal e de sua esposa), que evolui rumo a desfecho macabro.
O problema mais frequente em projetos nos quais um ator transita por diversos personagens é o da ostentação de uma versatilidade interpretativa. Alexandre Guimarães não cai exatamente nessa armadilha. Não exibe composições distintas. Em certa medida, os personagens parecem se contaminar uns aos outros. O ator busca uma fisicalidade híbrida entre o homem e o animal. Sugere o animal sem “virar” um por meio da imitação. Como narrador, não adere ao distanciamento tradicional; ao contrário, realça comprometimento com o que conta, atravessado pelos acontecimentos.
Apenas num breve instante o ator se afasta dos personagens para se dirigir ao público e destacar um pequeno trecho do texto com voz desarmada, quebra cuja artificialidade é sublinhada por luz neutra. Já ao longo da apresentação a iluminação prioriza as cores intensas (laranja e vermelho), escolhas evidentes para frisar a carne e o sol inclemente do sertão, evocado ainda por meio de sonoridades que remetem à cultura nordestina.
Em O Açougueiro, Alexandre Guimarães descortina uma história simples de maneira fluente. Com o corpo coberto de barro, o ator traz à tona o homem animalizado, seja no que se refere à conduta primitiva decorrente de mentalidades atadas a preconceitos, seja no que diz respeito à força instintiva que constitui cada indivíduo.
Suzana Castelo e Darwin Del Fabro em Lili (Foto: Lucio Luna)
Em Lili, texto de Walter Daguerre inspirado nos diários de Lili Elbe – que nortearam o filme Garota Dinamarquesa (2016), de Tom Hooper – a noção de personagem vem à tona não como uma máscara postiça portada por aquele que atua. Ao contrário, a personagem se constitui, aos poucos, como identidade. É o que se pode notar na trajetória de Einer Wegener, que começou a posar para as telas da esposa, Gerda Gottlieb, e, de início de forma despretensiosa, passou a usar trajes femininos em eventos sociais. Mas Einer se identificou cada vez mais com a alma feminina até se perceber como “uma mulher trancafiada num corpo de homem”. Decidiu, então, realizar a cirurgia de troca de sexo numa época (as primeiras décadas do século XX) embrionária em relação aos estudos nesse terreno.
A montagem de Susana Ribeiro, em cartaz no Mezanino do Sesc Copacabana, descortina Einer por meio da instalação de fios que integra o cenário de Beli Araujo, uma espécie de biombo transparente que potencializa a ideia da personagem como instância reveladora, ao invés de ocultadora, do indivíduo. Einer atua como mulher. A atuação, porém, não se reduz a um fingimento; leva, isto sim, a um encontro com a sua verdade, a um apaziguamento do descompasso entre corpo e alma, tema abordado com bastante propriedade no filme Vera (1987), de Sergio Toledo. Esses conteúdos também são realçados pelas transparências, constantes durante a encenação, presentes nos diversos véus e nos figurinos de Antônio Medeiros (cabendo, em todo caso, fazer restrição ao primeiro concebido para Gerda). Rodrigo Belay insere a cor através da iluminação à medida que o espetáculo avança e a música de Ricco Vianna é mais interveniente que o necessário.
Nessa montagem destinada a dois atores, Darwin Del Fabro apresenta gradações mais sutis que Suzana Castelo, mas essa diferença decorre, pelo menos em parte, do fato de Einer despontar como um personagem mais nuançado que Gerda. De qualquer modo, as atuações são valorizadas pela direção de movimento de Renato Vieira, determinante em algumas cenas, como a da cirurgia. Lili se conecta a trabalhos recentes voltados para o campo da sexualidade, como Tran_se, com Joelson Gusson, e Lady Christiny, com Alexandre Lino. Cada uma das encenações possui certas especificidades. Em Lili, a produção artística – as telas de Gerda, os diários de Einer ou ainda o corpo dele, uma obra em transformação – está em pauta ao longo do processo de transição física atravessado pelo personagem.
Edmundo Lippi, Gláucia Rodrigues e Igor Cosso em O Casamento Suspeitoso (Foto: Chico Lima)
A Cia. Limite 151 mantém uma postura corajosa ao investir em dramaturgia de qualidade numa época marcada pela decrescente valorização do texto clássico. Essa resistência diante do panorama teatral contemporâneo vem acompanhada de uma dose de negociação – e, pelo menos a princípio, não há problema nisso –, evidenciada, no caso do grupo, por meio da escolha de peças filiadas à comédia (gênero de autores priorizados pelo coletivo, como Molière e Ariano Suassuna).
A mencionada ousadia de trabalhar com dramaturgia que tem atravessado o tempo contrasta, em alguma medida, com uma certa acomodação da companhia, no que diz respeito ao transporte dos textos para o palco. O grupo não ambiciona se expressar a partir das peças, promover eventuais articulações (objetivos que não necessariamente levariam a uma desconstrução da integridade do material original) ou propor uma leitura particularizada, mas apenas apresentar ao espectador as histórias contidas em cada peça. Se por um lado a companhia presta um importante serviço ao descortinar textos relevantes num momento em que muitos são injustamente relegados ao esquecimento, por outro os espetáculos do grupo tendem a uma uniformização.
As direções das montagens da Cia. Limite 151 parecem buscar um proposital apagamento para que a peça reine diante da plateia. Não é diferente agora com a condução da encenação de O Casamento Suspeitoso, atualmente em cartaz no Teatro Eva Herz, a cargo de Gláucia Rodrigues e Wagner Campos, que colocam os espectadores frente às peripécias de Cancão e Gaspar, empregados que não medem esforços para impedir a realização de um casamento por interesse. A dupla de criados, que lembra bastante outro par da dramaturgia de Ariano Suassuna, os célebres João Grilo e Chicó de O Auto da Compadecida, remete a uma tradição histórica da comédia, de autores como Molière e Goldoni, ambos influenciados pela Commedia Dell’Arte.
Elemento imperante na comédia, o disfarce surge em destaque em O Casamento Suspeitoso. Os personagens camuflam com constância suas próprias identidades com o intuito de alcançar seus intentos. Essa característica distingue as atuações. Parte do elenco – André Arteche, Edmundo Lippi, Maria Adélia e Henrique Juliano – envereda por composições acentuadas, enquanto a outra parte – Flávia Fafiães (mesmo que levemente caricata), Isabella Dionísio, Igor Cosso e Hélio Zachi – se aproxima mais da corrente naturalista, menos exacerbada. Gláucia Rodrigues, como Cancão, transita entre as duas vertentes. Permanece em registro discreto durante quase todo tempo, interpretando personagem masculino sem imprimir um desenho estilizado, mas ao imitar, em dado instante, Frei Roque, recorre aos expedientes da composição.
As diversas janelas e portas, cobertas por panos de estampas variadas, que integram o cenário de Colmar Diniz (responsável ainda pelos figurinos), realçam os sucessivos desencontros que geram os mal-entendidos frequentes na linhagem da comédia. A cenografia reconstitui espaço fechado, mas com aberturas para o meio externo. Nessa encenação de O Casamento Suspeitoso, a brasilidade, tão definidora da dramaturgia de um autor como Suassuna, que se apropriou de referências estrangeiras, vem à tona através da iluminação, ora solar, ora crepuscular, de Rogério Witgen e da direção musical de Wagner Campos.
A companhia Amok Teatro retoma o universo da guerra, agora em adaptação do romance Terra Sonâmbula, do escritor moçambicano Mia Couto, atualmente em cartaz no Teatro III do Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB). A dramaturgia oscila entre o dramático e o épico, entre o percurso individual e a panorâmica de um continente em agonia, entre a vivência e a narração dos acontecimentos. Quando discorrem sobre suas próprias experiências, os personagens assumem tom emocional, diferentemente dos momentos em que abordam histórias com as quais não estão comprometidos em primeira instância.
Talvez a balança penda para o dramático, na medida em que, mais do que descrever o contexto devastador da África, Mia Couto destaca a reverberação particular da guerra em indivíduos assombrados por fantasmas (do pai, do “patrão colonial”, do estuprador). A necessidade de se distanciar da terra de origem representa o afastamento das raízes afetivas. Kindzu afirma, em dado instante de sua jornada, que deseja encontrar um continente dentro da África. Os personagens externam urgência de resgatar elos com os antepassados. Mas não “apenas” com eles – também com os filhos dos quais tiveram que se separar. O maior temor parece residir na possibilidade da guerra tornar impessoal uma geografia até então familiar.
Diretores da Amok Teatro e de Os Cadernos de Kindzu, Ana Teixeira e Stéphane Brodt procuram materializar o impalpável – a atmosfera de um mundo – no palco, principalmente por meio da música, a cargo dos atores, que traz à tona cantigas, propõe sonoplastias e fornece acompanhamento que realça o clima das cenas. A música (seu emprego constante é questionável) sugere a ligação com um passado que segue ecoando no presente, foco temático dessa nova montagem e um importante elemento do trabalho praticado pela companhia, a julgar pelo aproveitamento de formas teatrais, como os bonecos, as máscaras – ambos evocados de modo bastante simples – e as sombras. A valorização da teatralidade fica evidente nas soluções, mesmo que não exatamente originais, escolhidas para as passagens do estupro e do parto.
Ana Teixeira e Stéphane Brodt investem numa cena rústica, austera, destituída de qualquer exuberância, que não visa a deslumbrar as retinas dos espectadores, impressão decorrente das concepções do cenário e dos figurinos (os dois quesitos assinados pelos diretores). A iluminação de Renato Machado revela sintonia com essa linha ao priorizar a neutralidade em detrimento de cores mais intensas. Já o registro interpretativo do elenco (Graciana Valladares, Gustavo Damasceno, Luciana Lopes, Sergio Ricardo Loureiro, Thiago Catarino, Vanessa Dias e Stéphane Brodt) contrasta com a contenção imperante na cena. Os atores, munidos de sotaques, estampam os estados emocionais em suas máscaras faciais. Alguns dão vazão a composições muito carregadas (em especial, as atrizes que fazem as personagens idosas), provavelmente na intenção de caminhar em sentido contrário ao do naturalismo banal.
Eventuais restrições à parte, Os Cadernos de Kindzu, trabalho relacionado a espetáculos anteriores da Amok, tanto a Trilogia da Guerra (O Dragão, Kabul, Histórias de Família) quanto Salina, tragédia contemporânea mergulhada na África, confirma o rigor que marca as encenações da companhia.