Andrea Beltrão em Antígona (Foto: Guga Melgar)
Antígona e Mata teu Pai são apropriações de tragédias gregas que empregam procedimentos diversos em relação aos textos de origem. No caso da primeira, em cartaz no Teatro Poeirinha, o diretor Amir Haddad e a atriz Andrea Beltrão mantêm o título da peça de Sófocles e recorrem à tradução de Millôr Fernandes inserindo eventualmente linguajar afinado com a contemporaneidade; na segunda – que encerrou apresentações no Espaço Cultural Sergio Porto e terá sessões no Gamboavista e no Festival de Curitiba –, Grace Passô concebeu uma peça autônoma a partir de Medeia, de Eurípedes.
As operações dramatúrgicas visam à amplitude temporal. Em Antígona, Haddad e Beltrão não se “limitam” aos fatos circunscritos nesse texto específico. Estampam na parede do teatro cartazes destacando a descendência de Antígona. Uma arqueologia que traz à tona não apenas as duas peças anteriores da Trilogia Tebana – Édipo Rei e Édipo em Colono –, como um passado ainda mais remoto. Já o vocabulário ocasionalmente informal e popular da atriz é um mecanismo que tende a promover um elo com o espectador de hoje.
Esse recurso, por si só, resultaria artificial e insuficiente. No entanto, a peça de Sófocles realça embates que continuam pertinentes nos dias atuais – em especial, no que diz respeito ao conflito entre a lei instituída e a determinação individual. No texto, Creonte, rei de Tebas, proíbe que Polinice, classificado como traidor de guerra, que morreu em luta contra o irmão, Eteocles, seja enterrado. Irmã de ambos, Antígona desobedece a ordem do monarca. Age de acordo com seu princípio moral, que considera como a lei mais importante a ser seguida.
Além do potencial reflexivo da peça, a conexão com o aqui/agora é frisada, na encenação de Haddad, por meio da materialização de uma Antígona que sua e se descabela. As heroínas trágicas normalmente pertencem a dinastias nobres, distantes da massa, mas humanizadas devido à exposição de suas falhas – são dominadas por sentimentos proibidos. Fragilizada pela tragédia familiar (a descoberta do parentesco dos pais, a cegueira de Édipo, a morte dos irmãos), Antígona, na versão de Haddad/Beltrão, desponta como figura carnal, com a qual se pode estabelecer identificação.
Há uma quebra de hierarquia tanto no modo nada submisso do encenador e da atriz na abordagem da obra de Sófocles quanto na proposta de vínculo firmada com a plateia. Andrea Beltrão recebe os espectadores na entrada do teatro e permanece no palco, ao final, à disposição do público. A suspensão da quarta parede fica concentrada nesses minutos anteriores e posteriores à sessão propriamente dita. Se por um lado a instalação e preservação (pelo menos, parcial) da barreira entre plateia e espetáculo durante a maior parte do tempo não direciona a atriz para a adoção de um tom interpretativo austero, hierático, por outro Beltrão não envereda por um registro de atuação invisível, transparente, naturalizado. A composição da personagem é evidenciada por meio de um trabalho corporal vigoroso, expansivo, sem que esse caminho implique necessariamente em perda de contato com a palavra ou de reverberação íntima dos acontecimentos, a exemplo das passagens em que Antígona expressa as justificativas pessoais que motivam suas ações. São instantes de verticalização, diferentes daqueles em que a atriz transita por outros personagens além da heroína esboçando fisicalidades de maneira mais propositadamente sugestiva do que acabada. Prevalece, contudo, um tom interpretativo que sinaliza a preocupação em aproximar a tragédia do público.
Debora Lamm em Mata teu Pai (Foto: Aline Macedo)
Em Mata teu Pai, novo projeto da Cia. OmondÉ, Grace Passô comprova que a tragédia atravessa os séculos ao traçar uma ligação entre a origem de Medeia – estrangeira que abandonou sua pátria para acompanhar Jasão, assassinando, na fuga, o próprio irmão – e a via-crúcis enfrentada pelos imigrantes na atualidade – com foco no contexto da Síria. O caráter político da dramaturgia também transparece na inversão sexual (ao invés de filhos, Medeia tem duas filhas), alteração que dialoga com a reivindicação de igualdade de direitos da mulher em relação ao homem nos dias de hoje.
Diretora da montagem, Inez Viana aprofunda a articulação contida no texto ao tematizar os excluídos de agora por meio de um coro formado por mulheres do povo (moradoras da região da Gamboa, com mais de 65 anos) e, entre elas, um homem travestido, em referência aos portadores de sexualidades distintas dos padrões pré-fixados, ainda vitimados diariamente. A diretora investe em aproximação entre o espetáculo e os espectadores ao destiná-los os papéis das filhas de Medeia. Em dado momento há uma cena de amamentação que insinua que as integrantes do coro representariam as filhas, mas essa possibilidade fica circunscrita à passagem mencionada. O título do texto dá a impressão de atribuir uma função ativa às filhas, como se Medeia transferisse para elas o ato de matar – assassinar Jasão, o homem que a abandonou para casar com uma mulher mais jovem e mais rica, e não as crianças, como estratégia para atingir o ex-marido, conforme acontece no original –, mas essa mudança mais instiga a imaginação do que se impõe como leitura fechada.
Como Medeia diante das filhas (espectadores), Debora Lamm argumenta com intensidade direta e contundente. Inflama-se, em certos instantes, sem, porém, se exceder, demonstrando cuidado em controlar a emoção. Sintonizada com as questões levantadas na dramaturgia e na encenação, a atriz evoca sua própria descendência ao entoar canto judaico. Viana, escorada no texto de Passô, inclui Medeia numa contemporaneidade caótica, numa atmosfera desoladora, a julgar pela paisagem apocalíptica – repleta de computadores quebrados e amontoados de forma estilizada como num escombro, numa ruína – da cenografia de Mina Quental. Um panorama acentuado pelo figurino cor de carne, gasto, de Sol Azulay, pela partitura sonora áspera, rascante (direção musical de Felipe Storino) e pela iluminação agressiva (abusando do efeito de cegueira junto ao público), apesar de dosada nas cenas realizadas no fundo do palco e com bom resultado no aproveitamento do globo espelhado, de Nadja Naira e Ana Luzia de Simoni.
Antígona e Mata teu Pai são trabalhos que intencionalmente não se ajustam a um padrão de acabamento. Enquanto a encenação de Amir Haddad deixa à mostra uma aparência de esboço – por meio da atriz que subverte as habituais recomendações ao público antes do início da sessão (celulares podem ficar ligados) e da aparelhagem de som e da mesa com água à vista dos espectadores –, a de Inez Viana extrai parte de sua potência das presenças de não profissionais no coro. São opções que decorrem, em algum grau, dos olhares dessacralizados lançados na direção do clássico.
Texto publicado no site www.teatrojornal.com.br