Atriz excepcional, de personalidade cênica forte, que imprimiu autoridade na interpretação de personagens as mais variadas, Suzana Faini (1933-2022) marcou presença em momentos históricos do teatro brasileiro. Bailarina de formação, Faini – que morreu na última segunda-feira, aos 89 anos – integrou o elenco de Hoje é Dia de Rock, peça de José Vicente que fez imenso sucesso na montagem do Teatro Ipanema, no início da década de 1970, sintetizando o espírito libertário de uma juventude que crescia no período mais opressivo da ditadura militar. Faini interpretou a Índia, figura mítica que distanciava o texto de uma estrutura realista. Esteve em cena, em 1978, no aclamado espetáculo inaugural do Teatro dos 4 – Os Veranistas, encenação de Sergio Britto para o original de Maximo Gorki sobre integrantes de uma alienada intelligentsia da Rússia pré-revolucionária isolados numa casa de campo no início do século XX. E fez parte da formação inicial, no começo dos anos 1990, do irreverente grupo Os Fodidos Privilegiados, conduzido por Antonio Abujamra, em peças como Um Certo Hamlet, versão desconstruída da peça de William Shakespeare, e Phaedra, de Racine.
Suzana Faini foi vista em muitos outros espetáculos. Retomou contato com a companhia Os Fodidos Privilegiados (que, a partir de determinado instante, passou a ser capitaneada por João Fonseca) em Retrato de Gertrude Stein Quando Homem, de Alcides Nogueira, As Bruxas de Salém, de Arthur Miller, e Édipo Unplugged, abordagem contemporânea da tragédia de Sófocles. Sob o comando de Fonseca fez Thérèse Raquin, de Emile Zola, encenação da Cia. Limite 151, coletivo voltado para o teatro de repertório. Depois da experiência de Os Veranistas, voltou a ser dirigida por Sergio Britto numa montagem contundente para Casamento Branco, de Tadeusz Rosewicz.
Estabeleceu parceria com o grupo Mergulho no Trágico em As Troianas, tragédia de Eurípedes, interpretando Hécuba. Contracenou com Dina Sfat e Jacqueline Laurence em As Criadas, montagem de Gilles Gwizdeck para o texto de Jean Genet. Sob a direção de Aderbal Freire-Filho fez Tio Vânia, encenação para a célebre peça de Anton Tchekhov realizada no Parque Lage. Também trabalhou em espetáculos assinados por Paulo de Moraes (A Mecânica das Borboletas, de Walter Daguerre, O Como e o Porquê, de Sarah Treem), Marcus Vinicius Faustini (numa revisita a Hoje é Dia de Rock), Ticiana Studart (As Lágrimas Amargas de Petra von Kant, de Rainer Werner Fassbinder), Marcus Alvisi (Hamlet, de Shakespeare) e Claudio Mendes (A Casa de Bernarda Alba, de Federico Garcia Lorca).
Nos anos 2000, numa rara incursão pelo musical, Suzana Faini esteve no singular 7, de Charles Möeller (espetáculo realizado em parceria com Claudio Botelho). Intensificou os trabalhos em teatro, acumulando prêmios por suas atuações. Ganhou o Cesgranrio pelo papel da mãe dominadora em Silêncio!, peça de Renata Mizrahi, dirigida pela autora e por Priscila Vidca, e o APTR (Associação dos Produtores de Teatro) pela atuação no mencionado O Como e o Porquê. Recebeu ainda elogios por Família Lyons, de Nicky Silver, em montagem dirigida por Marcos Caruso.
Presença constante na televisão – cabe lembrar de suas atuações em novelas de Janete Clair – e mais ocasional no cinema – mas se destacando em filmes como A Extorsão (1975), de Flavio Tambellini –, Suzana Faini pertenceu ao grupo das maiores atrizes do país.
Há 15 anos Marieta Severo e Andréa Beltrão partiram possivelmente para a maior aventura de suas carreiras: ter um teatro próprio. Assim surgiu o Teatro Poeira, nome que remete à tradição do cinema poeira, designação – frisada no minucioso livro de Alice Gonzaga (Palácios e Poeiras) – referente às antigas salas de bairro, de aparência e estrutura bem mais simples que as grandes e lendárias edificações onde os filmes mais concorridos eram exibidos.
Havia riscos evidentes. Desde o início, Marieta e Andréa, sócias na empreitada, sabiam que não seria nada fácil administrar um teatro em meio a um contexto adverso no que diz respeito tanto às especificidades do quadro no Rio de Janeiro quanto à crescente desvalorização do teatro num século XXI enfeitiçado pelos aparatos tecnológicos. Além disso, não escolheram espaços em shoppings, muitas vezes priorizados pelos espectadores devido à comodidade e à segurança oferecidas, mas marcados, com frequência, por programação repleta de apelos para seduzir de imediato uma ampla faixa de público. Caminharam na contramão e se depararam com uma aprazível casa de rua, em Botafogo. Como se não bastasse, anos depois adquiriram a casa ao lado inaugurando um novo teatro: o Poeirinha.
O Poeira não despontou como um espaço para servir “apenas” de veículo para Marieta Severo e Andréa Beltrão. Elas, claro, vêm realizando espetáculos no teatro, ora em separado (Marieta em Incêndios, Andréa em Jacinta e Antígona), ora juntas (Sonata de Outono, a primeira montagem, e As Centenárias). Mas o Poeira e o Poeirinha logo ganharam destaque na cidade como espaços inclusivos, que receberam, ao longo dos anos, encenações heterogêneas que talvez possam ser vagamente aproximadas pela inquietação artística, e mais cursos, workshops, oficinas e seminários, programação norteada pelas atrizes e pelo diretor Aderbal Freire-Filho. É provável que uma parcela significativa desses trabalhos não conseguisse outro espaço para se apresentar (com exceção do Espaço Sesc, em Copacabana, sempre tomado pela generosa alternância de montagens permanecendo durante curto período em cartaz) ou para dar continuidade à temporada (tendo em vista que o Poeira e o Poeirinha, além das estreias de espetáculos inéditos, se destinam a reestreias de encenações vindas de teatros diversos).
A decisão de inaugurar um teatro não foi instantânea. Marieta Severo e Andréa Beltrão começaram a trabalhar juntas na ótima montagem de Mauro Rasi para o seu próprio texto, A Estrela do Lar, parte de um grupo de peças autobiográficas. Desenvolveram a parceria em A Dona da História, texto escrito e dirigido por João Falcão. Atrizes de gerações diferentes, que construíram percursos também distintos em cima do palco, as duas estabeleceram sintonia em relação à identidade do Poeira. Marieta, desde os anos 1960, vem valorizando consideravelmente a dramaturgia brasileira, a julgar pelas mencionadas peças de Rasi e Falcão e por sua presença em montagens de textos de Gastão Tojeiro (em Sabiá 67, apropriação de Onde Canta o Sabiá?, a cargo de Paulo Afonso Grisolli), Leilah Assumpção (Jorginho, o Machão), Nelson Xavier (O Segredo do Velho Mudo), Martins Pena (As Desgraças de uma Criança, espetáculo de grande sucesso), Oduvaldo Vianna Filho, Ferreira Gullar (autores de Se Correr o Bicho Pega, Se Ficar o Bicho Come, trabalho do Grupo Opinião), Chico Buarque (Ópera do Malandro) e, em especial, a célebre trilogia de Naum Alves de Souza (No Natal a Gente vem te Buscar, Aurora da Minha Vida e Um Beijo, um Abraço, um Aperto de Mão). Não se deve, em todo caso, esquecer de suas incursões por peças estrangeiras, que renderam encenações instigantes – como Amadeus, de Peter Shaffer, Cenas de Outono, de Yukio Mishima, Antígona, de Sófocles, e Torre de Babel, de Fernando Arrabal. Já Andréa começou nos grupos jovens da virada dos anos 1970 para 1980, como Manhas e Manias. Brilhou no humor através de espetáculos saborosos, como O Amigo da Onça, de Chico Caruso e Nani, e enveredou, com habilidade, pelo drama em A Memória da Água, de Shelagh Stephenson, A Prova, de David Auburn, e Como Aprendi a Dirigir um Carro, de Paula Vogel.
Para celebrar os 15 anos do Poeira, Marieta e Andréa optaram por uma exposição. Diante da impossibilidade de Aderbal, por motivos de saúde, assumir a concepção, as atrizes chamaram Bia Lessa. O resultado aponta para um entrosamento entre a trajetória do Poeira e a criatividade de uma diretora que costuma promover, em seus espetáculos, conjugações entre o teatro e outras manifestações, principalmente as artes plásticas. Na visita ao Teatro Poeira, o espectador transita por uma instalação na qual frases de textos, realçadas por todo o espaço, objetos simbólicos e eventuais vozes em off são articulados de maneira não reiterativa. É convidado, nesse sentido, a estabelecer associações próprias, vivenciando momentos de descoberta ao abrir armários e gavetas em áreas do teatro até então inacessíveis (como camarins e coxias). Em determinado estágio da travessia, o visitante chega ao palco e, de lá, assiste à projeção de um vídeo, exibido em telas localizadas no espaço destinado à plateia, no qual Marieta e Andréa falam sobre o vínculo que as une – e deu origem ao teatro – e as interações com os vários artistas que passaram pelo Poeira. Há também menções a encenadores do passado e do presente, responsáveis por declarações em relação ao fazer teatral que continuam pulsantes nos dias de hoje. A itinerância se completa com pequenos registros fotográficos de cada um dos muitos espetáculos que desembarcaram no teatro.
A exposição se estende ao espaço do Poeirinha, com o visitante percorrendo livremente a segunda casa. Pelo foyer, surgem fotos de espetáculos ampliadas e coladas numa estrutura que intencionalmente parece em construção. Ao mesmo tempo em que trazem à tona a fase de obras do teatro, Marieta, Andréa e Bia sublinham a ideia de teatro como algo inacabado, em processo. Lembram que um espetáculo não é uma realização cristalizada e sim um trabalho que muda a cada apresentação, permanecendo sempre em aberto, nunca finalizado. Dentro da sala do Poeirinha, performers peneiram areia sobre placas de metal e revelam imagens sugestivas da intensidade dos encontros entre os artistas.
Marieta Severo e Andréa Beltrão dão prosseguimento à honrosa tradição de atores e atrizes – como Aurimar Rocha (que arrendou o Teatro de Bolso de Silveira Sampaio), Teresa Rachel e Thaïs Portinho, entre alguns exemplos – que mantiveram teatros, ainda que com graus de importância distintos. No caso do Poeira e do Poeirinha, um consistente pensamento artístico vem regendo, no decorrer de todos esses anos, as escolhas das sócias.
Os ingressos podem ser adquiridos gratuitamente pela plataforma Sympla
“Personagem é para evitar constrangimento”, dizia Camilla Amado. Por meio dessa constatação, frisava que o ator não realiza o seu trabalho impunemente, na medida em que utiliza seu material pessoal na construção de cada personagem que interpreta. A habilidade de expressar verdades com surpreendente sabedoria era uma das características da atriz, que morreu no último domingo. Sempre determinada a caminhar na contramão de uma postura de diva, Camilla fazia questão de demolir formalidades na maneira como se relacionava com artistas e anônimos.
A reverência, em todo caso, é justa. A excelência que alcançou nas montagens de Um Equilíbrio Delicado, peça de Edward Albee, e Troia, inspirada na tragédia de Eurípedes, ambas dirigidas por Eduardo Wotzik, é suficiente para dimensionar sua importância como atriz. Sua trajetória, claro, não se resume ao brilho de trabalhos pontuais.
A personalidade afetuosa e a qualidade profissional, méritos estendidos às funções de professora e preparadora de atores que exerceu no decorrer do tempo, fizeram com que estabelecesse parcerias duradouras. Dividiu a cena com Luis de Lima em Espetáculo Ionesco, A Lição, novamente Ionesco, e em Um Equilíbrio Delicado. Foi conduzida e contracenou com Antonio Pedro em diversos espetáculos: Desgraças de uma Criança, de Martins Pena (grande sucesso), A Dama das Camélias, de Alexandre Dumas Filho, Festa de Sábado, de Braulio Pedroso, Hamlet, de William Shakespeare, e em incursões no universo brechtiano em De Brecht a Stanislaw Ponte Preta e Tá Ruço no Açougue – Um Baixo Brecht, adaptação de A Santa Joana dos Matadouros. Brecht ainda foi revisitado pela atriz em O Homem Vivo, sob a direção de Delson Antunes.
Não há como mencionar todas as ligações artísticas, na direção ou atuação, que incluem, entre outros, Ítalo Rossi (em Momentos, Morre um Coração Vulgar e Um Dia Muito Louco ou Bodas de Fígaro), Nelson Xavier (O Segredo do Velho Mudo, Trivial Simples) e Clarice Niskier (Tá Ruço no Açougue, Um Equilíbrio Delicado, Troia, Yerma, O Lugar Escuro). Através do projeto de As Cadeiras, de Ionesco, retomou recentemente o vínculo com Marco Nanini, ator com quem havia trabalhado em Encontro no Bar, montagem em que Camilla se arriscou na produção, Desgraças de uma Criança e Brasil: Da Censura à Abertura, texto e direção de Jô Soares. E um elo não pode ser esquecido: com a filha, Rafaela Amado, que a dirigiu (juntamente com Mariah Schwartz) em O Jardim Secreto, adaptação de Renata Mizrahi para o livro de Frances Hodgson Burnett. Camilla e Rafaela dividiram a cena na montagem de João Fonseca para Electra, tragédia de Sófocles.
Filha de Gilson Amado, fundador da TVE, e da educadora Henriette, Camilla tangenciou momentos emblemáticos do teatro brasileiro ao substituir Vera Gertel na encenação de José Renato para Eles não usam Black-Tie, de Gianfrancesco Guarnieri, no Teatro de Arena, e Miriam Mehler em Anjo de Pedra, de Tennessee Williams, espetáculo, a cargo de Geraldo Queiroz, do Teatro Brasileiro de Comédia (TBC). E participou de uma nova montagem de Vestido de Noiva, em 1976, assinada por Ziembinski, o mesmo encenador do histórico primeiro espetáculo realizado, em 1943, com o grupo Os Comediantes, a partir da peça de Nelson Rodrigues. A atriz evocou a experiência no documentário inédito Zimba (2021), de Joel Pizzini. O reconhecimento pela carreira relevante foi manifestado por meio do prêmio que recebeu da Associação de Produtores do Rio (APTR).
Camilla também se destacou no cinema e na televisão. Esteve em filmes como O Casamento (1976), transposição de Arnaldo Jabor da obra original de Nelson Rodrigues, e Amélia (2000), de Ana Carolina, centrado na vinda da atriz Sarah Bernhardt ao Brasil. Depois de anos afastada das novelas, tornou-se cada vez mais assídua na TV, marcando presença, por exemplo, na versão de Éramos Seis, exibida na Rede Globo.